A liberdade censurada

Por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Na próxima segunda-feira celebra-se mais um 25 de Abril.
Este ano as comemorações de Abril começaram mais cedo, mais precisamente no dia 24 de março, data que marcou o momento em que a democracia ultrapassou, em um dia, os anos que vivemos em ditadura.

Embora faltem dois anos para 2024, começam este ano as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

Quando vieres a Lisboa vou levar-te à exposição Proibido por Inconveniente. Materiais da censura, do arquivo Ephemera, do historiador José Pacheco Pereira. Uma belíssima forma de os mais velhos recordarem, e de os mais novos descobrirem, as formas mais ou menos subtis de como a ditadura impedia que víssemos o país que éramos.

(Faz-me lembrar o que ouvimos diariamente sobre a Rússia).

Imagina que esta exposição acontece na Av. da Liberdade, no edifício Diário de Notícias. Onde tu foste tão feliz – e já sem censura!

Razões mais do que suficientes para irmos visitar o espaço.

Já te disse que vivi numa rua com o nome José Dias Coelho durante vários anos?

O artista plástico foi um grande ativista comunista e lutou durante anos contra o regime. Era o responsável pelo setor intelectual do PCP quando, em dezembro de 1961, com 38 anos, foi assassinado a tiro pela PIDE no bairro de Alcântara, em Lisboa, na rua que tem hoje o seu nome, e onde existe uma belíssima biblioteca.

Tu que foste casada com um grande comunista, que diria o Mário Castrim sobre esta invasão da Rússia à Ucrânia? Que comentário faria o crítico de tv, em relação ao PCP votar contra o discurso de Zelensky na Assembleia da República?

Quem também tem uma belíssima coleção de artigos, e memórias, sobre a censura és tu.

Artigos cortados com lápis azul que levas às escolas, capas de jornais com receitas, tinhas um quarto de hóspedes onde recebias comunistas… e até tens uma história que envolve os russos e a PIDE.

Conta-me tudo.

Viva a liberdade!

Bjs

 

Querido neto,
  Antes que me perguntes “onde estavas no 25 de Abril”, aí vai já a resposta: no Coliseu, a assistir à ópera  “La Traviata”, com a Joan Sutherland e o Alfredo Kraus.

Foi uma récita extraordinária, uma data de cravos lançados para os cantores no palco – daí que Alfredo Kraus, de cada vez que eu o entrevistava me dizia sempre: «Não se esqueça de pôr no seu texto que os primeiros cravos da vossa revolução foram para mim!».

Cheguei a casa e o meu marido disse-me que parecia que estava a haver um golpe militar, a rádio já tinha falado nisso. Ficámos com muito receio porque nessa altura o que se temia era um golpe de direita com o Kaúlza de Arriaga.

É claro que fui logo para a rua.

Entrei para o DL com 18 anos, e era muito complicado escrever com censura e com a PIDE sempre à espreita, os telefones e os correios vigiados. (Uma vez fiz uns bolos, chamados “russos”, de que uma tia gostava muito e liguei-lhe a dizer: «Já aí vão os russos» – e quando cheguei à porta estava a polícia à minha espera e levou-me para a esquadra, sempre a perguntar onde estavam os russos.

Uma vez a primeira página do DL foi toda cortada. O chefe de redação, no dia seguinte, mandou encher toda a primeira página com receitas de cozinha… Claro que os leitores perceberam logo – e a censura no dia seguinte cortou o dobro.

O meu marido escrevia também para o Jornal do Fundão e a censura retalhava tudo. Farto daquilo, inventou uma história dizendo aos leitores que se ia embora, mas que já havia alguém para o substituir. Então arranjou um pseudónimo para parecer que era outro. E a censura cortou tudo à mesma, escrevendo: «Este ainda é pior que o outro».

Quanto ao que perguntas, tenho a certeza de que o meu marido nunca estaria ao lado de Putin! Quando os programa eram maus, ele dizia mal; quando eram bons, ele dizia bem. A cor política não lhe interessava. Por isso era tão amigo do João Braga e do José Hermano Saraiva.

Viva a liberdade!

Bjs