Irlanda do Norte. Nacionalistas irlandeses podem ganhar pela primeira vez

No rescaldo do Brexit, a Irlanda do Norte parece cada vez mais próxima da reunificação com a Irlanda. O Sinn Féin, em tempos visto como braço político do IRA, mostra um novo rosto e os unionistas sentem-se traídos por Johnson. 

O desmembramento do Reino Unido, no rescaldo do Brexit, parece cada vez mais próximo. Já não é só a Escócia que dá dores de cabeça ao Governo britânico, mas também a Irlanda do Norte, que pela primeira vez está à beira de ter uma maioria nacionalista irlandesa nas eleições desta quinta-feira.

O Sinn Féin, em tempos visto como o braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla inglesa), tem 26% das intenções de voto, mostram sondagens da LucidTalk para o Belfast Telegraph. E está 6 pontos percentuais à frente do Partido Unionista Democrático, associado à Força Voluntária do Ulster (UVF), um grupo paramilitar protestante, que travou uma longa e sangrenta guerra contra o IRA e a comunidade católica, entre o final década de 1960 e 1998. 

Uma nova geração, que cresceu sem temer as bombas, esquadrões da morte e tiros nos joelhos que marcaram este conflito, conhecido como The Troubles, cada vez se identifica menos com as velhas divisões sectárias. Aqueles que tinham idade suficiente para votar no referendo ao Acordo da Sexta-feira Santa, que trouxe a paz à Irlanda do Norte, hoje têm pelo menos 42 anos. Mas cresce ressentimento entre a comunidade unionista, que se quer manter leal à coroa britânica. E os mais antigos não esquecem. 

“Acho que vai haver uma guerra”, respondeu sem hesitar Sarah, uma pensionista de 77 anos, questionada quanto ao que esperava destas eleições, com as sondagens a indicarem uma maioria nacionalista irlandesa. Cruzou-se com um repórter do Sunday Times em Shankill Road, epicentro das milícias unionistas, palco de sucessivos massacres. Ainda é separado do bairro vizinho de Falls Road, maioritariamente católico, por um dos icónicos “muros da paz” de Belfast (foto acima), pintados com motivos unionistas de um lado e com murais nacionalistas irlandeses do outro. “Nunca conseguiria reconciliar-me com isso”, continuou Sarah, receosa quanto a uma vitória do Sinn Féin. “Admito que sou preconceituosa, mas eles são assassinos”.

O facto é que o Sinn Féin, que em 2020 conseguiu ser o partido mais votado do outro lado da fronteira, na República da Irlanda, tem feito um esforço enorme para se afastar da sua antiga reputação.  Longe vão os tempos em que o partido era encabeçado por Gerry Adams, nascido em Belfast, oriundo de uma linhagem de guerrilheiros independentistas que se estende até ao séc. XIX – e que ganhou notoriedade com o movimento dos direitos civis irlandês, inspirado em Martin Luther King, exigindo que todos pudessem votar, não apenas os proprietários, o que favorecia os protestantes. Seria preso sob acusação de integrar o IRA. 

Hoje, o Sin Féin está nas mãos de Mary Lou McDonald, uma nativa de Dublin, representante da geração que entrou na política após 1998, sem viver os tiroteios, esquemas de tráfico de armas ou tentativas de homicídio em que veteranos nortenhos estiveram envolvidos. Soba a sua liderança, o Sinn Féin faz lembrar o Partido Nacional Escocês (SNP), que governa a Escócia, com uma orientação política de centro-esquerda e exigindo mais um referendo à independência.

Ambos os partidos se opuseram veementemente ao Brexit, uma posição popular, tendo o “não” no referendo à saída da União Europeia recebido 55% dos votos na Irlanda do Norte e 62% na Escócia. No entanto, uma vitória do Sinn Féin não seria devido a uma subida na sua votação, sendo até esperada uma ligeira quebra, mas sobretudo devido à derrocada eleitoral do DUP.

Os unionistas, que ganharam todas as eleições na Irlanda do Norte no último século, estão desmobilizados, após o DUP apoiar o Brexit, na esperança que isso diminuisse a ligação à República da Irlanda. Acabaram a sentir-se traídos por Londres, quando Boris Johnson aceitou a “fronteira no mar da Irlanda”, que impôs  à Irlanda do Norte regras comerciais diferentes do resto do Reino Unido, como parte das suas negociações com Bruxelas.

O resultado foi uma crescente dependência económica de Dublin, com 65% das exportações da Irlanda do Norte a seguirem para o sul, em 2021. A tudo isto soma-se o recente aumento do custo de vida no Reino Unido, que se torna particularmente grave na Irlanda do Norte, que sempre foi deixada para trás. 

“O Brexit foi desastroso para a União”, salientou o diretor do Belfast Telegraph, Sam McBride, à conversa com a New Statesman. “Acelerou a campanha pela reunificação, que estava morta na prática, e nunca ouve circunstâncias mais favoráveis para argumentar a favor da unidade irlandesa”, explicou. “Tens a sensação que o Reino Unido é um país que está a ir numa direção onde não queres ir. E ao mesmo tempo tens uma República da Irlanda aberta, pluralista,  próspera economicamente, que cada vez menos pessoas a norte da fronteira vêm como uma entidade ameaçadora”. 

A esperada vitória dos nacionalistas irlandeses seria inimaginável nos Troubles, ou antes disso, quando a Irlanda do Norte foi separada do resto da ilha e cuidadosamente retalhada pelo império britânico, em 1921, de maneira a manter-se “um Estado protestante, para um povo protestante”, como descreveu o seu primeiro chefe de Executivo, James Craig. Ainda assim, o Brexit só acelerou um processo que estava curso, sendo esperado que os censos de junho mostrem pela primeira vez uma maioria católica, dado esta comunidade ter uma taxa de fecundidade superior aos protestantes.  

Mesmo que o Sinn Féin ganhe as eleições, não poderá governar sozinho, porque o que sistema estabelecido pelo Acordo de Sexta-Feira Santa requer representação de protestantes e católicos. Já um referendo à reunificação com a Irlanda só poderia ser convocado por Londres, mas os nacionalistas irlandeses podem deixar correr o relógio. “O nosso dia virá”, ou Tiocfaidh ar la, em gaélico, reza o mote do Sinn Féin, que talvez até possa esperar para ganhar o ímpeto de um eventual referendo à independência da Escócia. 

A Irlanda do Norte tem pela frente uma “decada de oportunidade” para a reunificação, assegurou a líder do partido que tem tudo para ganhar as eleições esta quinta-feira. É algo “falado em cada vila e cidade na Irlanda, não em tom de anseio, mas como um futuro realista, alcançável e necessário”, escreveu McDonald, numa carta que enviou a diplomatas europeus, citada pelo Irish Times. 

O problema é que não há qualquer expectativa que tal cenário deixe tranquila os unionistas, que ainda o verão passou se amotinou sucessivamente contra a “fronteira no mar da Irlanda”, sentindo a sua herança britânica ameaçada. Outros só querem ser deixados em paz.   

“Enquanto este sítio se mantiver sossegado, estou bem com isso”, respondeu Dorothy, de 78 anos, que mora num bairro unionista, questionada pelo Le Monde quanto à previsível vitória do Sinn Féin. Dorothy só não quer o regresso dos Troubles. “Eu tive sorte, não perdi ninguém da minha família, mas foi terrível”, recordou. “Quando me lembro desse tempo, penso nos ucranianos”.