O pensamento de uma deputada

Se Portugal tivesse mantido desde o 25 de Abril as contas certas, e não quisesse viver acima das suas possibilidades, estaria hoje muito melhor do que está.

No debate parlamentar do Orçamento do Estado, Mariana Mortágua disse ao ministro das Finanças, Fernando Medina, com o ar de quem faz uma acusação gravíssima: «Não me admirava que, num dia de maior entusiasmo, o senhor ministro deixasse escapar um ‘não podemos viver acima das nossas possibilidades’, porque no fundo é isso que pensa».

E a deputada concluía que Medina está empenhado em seguir «uma política de direita», centrada no controlo do défice.

Ora, o controlo do défice público e as ‘contas certas’ de Fernando Medina não são uma bizarria nem um exclusivo da direita.

E a ideia de que Portugal ‘vive acima das suas possibilidades’ também não.

Há quase quarenta anos, em 1984, Mário Soares, então primeiro-ministro, dizia: «Os problemas económicos em Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto», porque o país se «habituou a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos».

E há mais de cem anos, outro socialista (este marxista), de nome Afonso Costa, achava exatamente o mesmo e combateu denodadamente o défice público, conseguindo o primeiro orçamento com superavit em muitos anos – o que lhe granjeou, diga-se, uma enorme popularidade.

Se Portugal tivesse mantido desde o 25 de Abril as contas certas, e não quisesse viver acima das suas possibilidades, estaria hoje muito melhor do que está.

Um país pode endividar-se temporariamente, para fazer frente a uma situação aflitiva ou realizar um investimento avultado, mas não pode ter o objetivo de viver constantemente de dinheiro emprestado.

Como uma família, de resto.

Uma família pode contrair uma dívida numa situação de aperto ou para comprar casa – mas não pode ter a pretensão de se sustentar toda a vida à custa de empréstimos.

O endividamento de Portugal ainda seria legítimo se tornasse o país mais forte, mais competitivo, mais produtivo.

É esse o caso da América, que tem a maior dívida do mundo mas também tem uma gigantesca capacidade produtiva e de atração de capitais.

Mas não é esse o caso de Portugal.

Nos últimos 20 anos o país endividou-se de forma brutal, duplicou a dívida pública, mas o valor do PIB pouco cresceu.

Ou seja: o endividamento não serviu para aumentar a nossa capacidade de produção.

Sumiu-se sem deixar rasto.

Serviu para tapar buracos do orçamento ou para dar benesses a algumas pessoas, e pouco mais.

Vamos deixar às novas gerações uma dívida colossal, das maiores do mundo (a 12.ª), mas não deixamos um país mais capaz de gerar riqueza.

E, com a dívida que temos hoje, vai ser muito difícil crescermos de forma sustentada.

Segundo análises feitas a partir de casos concretos, «o impacto de curto prazo da dívida sobre o crescimento é positivo, mas diminui para cerca de zero quando o rácio da dívida em relação ao PIB é de cerca de 67%». E quando ultrapassa os 95% «tem um impacto negativo sobre a atividade económica».

Portugal, cuja dívida ultrapassou os 120% do PIB, é um claro exemplo disso.

Endividamo-nos mas não crescemos.

É certo que o país está mais bonito, as cidades estão mais bem arranjadas, as pessoas vivem melhor.

Mas tal não aconteceu por via daquilo que produzimos mas sim à custa dos fundos europeus e das dívidas que contraímos.

Trata-se, pois, de uma situação ilusória e dificilmente sustentável.

Melhorámos alavancados por dinheiros que não resultaram do nosso trabalho.

E não poderemos viver assim eternamente.

É este, contudo, o modelo que Mariana Mortágua terá na cabeça.

Num debate televisivo no tempo de Passos Coelho, ouvi-a afirmar que existia uma maneira simples de financiar certas medidas sociais que ela propunha: «Não pagar os juros da dívida».

Assim mesmo, sem tirar nem pôr.

A fogosa deputada achava que Portugal podia não satisfazer os encargos da dívida pública e continuar a viver alegremente.

Pior: achava que Portugal podia não pagar e continuar a endividar-se.

Não lhe ocorria esta questão elementar: quem nos emprestaria dinheiro a seguir?

Se não pagássemos os juros da dívida, quem nos voltaria a financiar?

Tornar-nos-íamos um Estado-pária, à mercê dos especuladores.

Sinceramente, custa-me perceber como pode uma pessoa que diz coisas como estas ser deputada.

E até como foi possível formar-se em economia.

E como pode ainda ter algum crédito nos media.

Mas tem.

E continua a professar as mesmas ideias, atacando um ministro que defende o rigor orçamental e quer que o país tenha as contas certas.

Ou seja: um ministro que não quer continuar a acumular dívida, que os nossos filhos e netos terão de pagar.

Para Mortágua, este é que é o ‘mau da fita’ – e ela a ‘fada boa’.

P.S. – A ida de Guterres a Kiev, apesar de frustrante permitiu salvar umas centenas de vidas humanas. Já foi alguma coisa.