Uma dissidente no Comité Central: a camarada sem nome

Jerónimo arregala os olhos e todos os presentes se entreolham estupefactos. A camarada sem nome levanta-se. Tem o rosto pálido e morde os lábios…

O Comité Central do PCP está reunido para discutir a situação na Ucrânia. Pioneiro dos direitos das mulheres na mais pura ortodoxia soviética, tendo-as justamente afastado dos cargos importantes para as proteger das forças da reação, arrisca agora o número brutal de 28% de mulheres na direção e concede que Paula Santos inicie os trabalhos.

– Camaradas, estamos aqui para discutir a invasão da Ucrânia…

– Operação militar! – corrige-a Jerónimo de Sousa.

– E porque não força de paz? – pergunta António Filipe.

– Não exageremos – diz Jerónimo.

– Posso continuar? – pergunta Paula Santos.

– Ó camarada, uma vez que não começou bem, é melhor ser eu falar. Estão todos de acordo, não estão? – pergunta Jerónimo.

Como ninguém diz nada, Jerónimo prossegue.

– Condenamos o belicismo imperialista da NATO e dos Estados Unidos, o governo de extrema-direita ucraniano, e estamos solidários com o povo russo que se viu forçado a pegar em armas para se defender…

Nesse instante, uma camarada que ninguém sabe o nome e que nunca tinha aberto a boca, levanta o braço esquerdo e ousa interromper o líder.

– Peço a palavra.

Jerónimo arregala os olhos e todos os presentes se entreolham estupefactos.

A camarada sem nome levanta-se. Tem o rosto pálido e morde os lábios.

– As imagens…, aquelas imagens horríveis não me saem da cabeça…

– Refere-se às atrocidades dos nazis ucranianos sobre os russos, não é assim? – pergunta António Filipe.

– Não, é ao contrário – diz a camarada sem nome. As cidades ucranianas destruídas, os mortos nas ruas, as crianças a fugir, os relatos das violações… . Eu não consigo fazer de conta que aquilo não aconteceu.

João Oliveira levanta-se também. Solta chispas através dos óculos.

– Temos dissidente? Talvez seja melhor demitir-se!

Jerónimo de Sousa abre os braços.

– Calma camaradas. Nós somos um partido pluralista que condena o pensamento único. Todas as opiniões são válidas, desde que aprovadas pelo Comité Central. Quanto às imagens… são realmente duras. Mas temos uma ferramenta excelente para as interpretar: a dialética marxista. A tese diz que os russos estão realmente a cometer crimes de guerra, a antítese diz que é tudo encenado pelos ucranianos e então chegamos à nossa síntese e o problema está resolvido.

Está toda a gente a olhar intrigada para o líder, dedos coçam barbas e cabelos. Paula Santos aproveita para recuperar a palavra.

– Camarada, receio que nem toda a gente tenha entendido.

– É muito simples: nós sabemos muito bem que os russos invadiram a Ucrânia e que Putin é um assassino; gostaríamos de dizer que os ucranianos é que são os criminosos, mas não podemos ir tão longe; e desta mistura chegamos à síntese de que a culpa é do belicismo da NATO.

Todos batem palmas, menos a camarada sem nome que se ergue de novo.

– Então, sabemos que estamos a dizer mentiras, mas convencemo-nos de que dizemos a verdade? Como é que isso é possível? A minha consciência não está tranquila.

João Oliveira solta um berro. – Ó camarada, onde é que estava no 25 de Abril?

Apesar de desagradada, Paula Santos sente um ímpeto de solidariedade feminina.

– Ouça camarada, o processo de evolução histórica rumo à sociedade perfeita atravessa zonas de turbulência como a invasão, perdão, a operação militar na Ucrânia. É um mal necessário para atingirmos um bem supremo. Percebeu?

– Não…

– Camarada, costuma ler algum jornal além do Avante!?

– Às vezes…

– Ora desde que não leia o Nascer do Sol ou o Observador, poderá encontrar opiniões muito parecidas com as nossas. Autênticos mestres da dialética aplicada ao controlo da opinião pública. Confesso que até eu fiquei surpreendida.

António Filipe volta a falar.

– Olhe, quanto aos horrores na televisão, mude de canal. Experimente os programas de culinária. E agora veja o lado bom da coisa. Se a Direita e os países capitalistas condenam a Rússia, isso mostra que temos razão. Já sente a consciência tranquila?

A camarada sem nome respira fundo.

– Para termos a consciência tranquila deveríamos condenar o agressor em vez da vítima. Deveríamos estar do lado das pessoas que perderam familiares e ficaram sem casa, em vez das tropas que as bombardeiam. Defender os mais fracos. Não são esses os princípios do partido? Além disso, a Rússia é um regime comunista ou uma oligarquia corrupta? Não poderíamos, no mínimo, usar uma dialética flutuante e maleável à moda do BE?

Jerónimo de Sousa suspira.

– É melhor fazermos uma pausa.

Durante o intervalo, João Oliveira e outros membros do Comité Central tentam encontrar a camarada sem nome. Mas ninguém sabe onde ela está, como se chama ou sequer recorda o seu rosto. No dia seguinte, descobrem que não há nenhum registo da sua existência nos arquivos do partido.