A cobertura televisiva da guerra na Ucrânia apresentou uma novidade desde o início: o aparecimento dos militares-comentadores.
Depois dos políticos-comentadores, que quase tiraram o espaço aos jornalistas, foi a vez de os militares-comentadores surgirem em força.
Sobretudo os generais, que pareciam brotar do chão.
Simultaneamente, um comentador que em guerras anteriores se tinha distinguido por estar bem informado e ter um bom conhecimento do material bélico – Nuno Rogeiro –, nesta guerra da Ucrânia foi abafado pelos militares, mal se ouvindo a sua voz.
De início, achei esses comentários utilíssimos, pois tratava-se de pessoas que conheciam a arte da guerra, as suas táticas e estratégias.
Mas a pouco e pouco comecei a ver que alguns se engavam com demasiada frequência – dizendo por vezes num dia o contrário do que tinham dito no dia anterior.
Tendo afirmado que a tomada de Kiev seria uma questão de horas, depois já duvidavam da sua exequibilidade.
Mas continuavam a fazer declarações extraordinárias.
Perguntado sobre se os russos conseguiriam mesmo tomar a capital ucraniana, o major-general Carlos Branco respondeu com toda a convicção:
– Isso conseguem de certeza! Ou conseguem a bem, ocupando a cidade, ou bombardeiam-na e fica tudo raso.
A ideia de que o Exército russo venceria a guerra era uma certeza para a maioria dos generais.
Não havia outra hipótese.
E com essa convicção começaram a criticar Zelensky, por oferecer resistência ao invasor.
Segundo eles – e alguns opinadores civis afetos ao Kremlin –, a resistência de Zelensky só acarretaria mais perdas humanas.
Sendo impossível à Ucrânia conter o avanço do Exército russo, que era dez vezes mais forte, o melhor seria o Presidente render-se e não sacrificar o seu povo.
No fim da guerra, o resultado seria o mesmo – a vitória da Rússia –, e em caso de rendição as perdas de vidas humanas seriam muitíssimo inferiores.
Ouvi militares e civis dizerem isto preto no branco na TV.
A Ucrânia devia deixar-se ocupar sem luta.
Depois, quando começaram a ver que os russos avançavam com dificuldade a Norte, alguns generais explicaram: «Trata-se de uma manobra tática, para cercar a capital».
E quando se tornou claro que desistiam de ocupar Kiev, disseram: «Eles vão concentrar todas as tropas no Donbass, que afinal é o seu objetivo inicial, e aí avançarão com enorme facilidade pois a sua superioridade militar será esmagadora».
Mas ao fim de três dias começou a ver-se que o avanço russo, afinal, não era rápido – era lento.
E que as baixas do seu Exército eram enormes.
Hoje, os coronéis e os generais continuam a ir aos estúdios das televisões, mas alguns já não sabem bem o que dizer.
Deixaram de fazer previsões.
Dizem umas coisas soltas.
Têm medo de falar, para não cometerem mais erros.
O Exército russo, que eles idealizavam como uma força imbatível, revelou-se um tigre de papel.
Vladimir Putin, que eles julgavam um génio militar, revelou-se um ser humano frágil e capaz de erros básicos.
Que mais surpresas a realidade lhes reservará?
Às vezes, ‘saber’ não basta. Os generais sabem muito de tática e estratégia militar, de armamento – de metralhadoras, obuses, mísseis, tanques, lanchas, cruzadores, drones, aviões – mas, como dizia um conhecido filósofo, «uma coisa é saber, outra é perceber».
‘Saber’ todos podem saber: basta ler uns livros, estudar.
Mas ‘perceber’ só está ao alcance de alguns.
Os militares-comentadores terão estudado muito – mas a parte deles falta-lhes por vezes a capacidade de perceber a realidade que se desenrola por detrás das notícias.
Tudo somado, tenho sinceras dúvidas de que a participação de coronéis e generais nos comentários sobre a guerra da Ucrânia leve os telespetadores a percebe- rem melhor o que se passa.
Aliás, a overdose de comentários – de militares e de civis – a que temos assistido em todos os canais não ajuda nada.
Depois de um dia a ouvi-los, uma pessoa fica exausta, baralhada, com uma enorme confusão na cabeça, sem fazer nenhuma ideia do que está a acontecer.
Penso que um bom analista, isento, com conhecimentos de geoestratégia e de questões militares, substituiria com vantagem uma multidão de militares-comentadores.
Não quer dizer que não tenham aparecido alguns de grande gabarito.
Apareceram.
Mas perdem-se no meio da algazarra geral.
P.S. – O suicídio de João Rendeiro fez-me muita impressão. Dir-se-á que ele é que escolheu os caminhos que o conduziram à morte. Seja. Mas a Justiça também tem uma quota-parte de responsabilidade neste desfecho.