Aula 7: a pedra que dá luz – e não só

Deu a cal ao Aquentejo: todo o território nacional a sul do Tejo, uma designação do século XVIII. A lição desta semana com Galopim de Carvalho foi sobre o calcário. 

Calcário, a pedra que dá luz ao Aquentejo, começou por lembrar Galopim de Carvalho na sétima sessão do novo ciclo de conversas sobre Geologia promovido pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que o Nascer do SOL tem estado a acompanhar, nos 90 anos do professor e divulgador de ciência. «Aquentejo é todo o território nacional situado a Sul do Tejo, uma ideia avançada no século XVIII em Beja, mas que não fez vencimento. Alentejo era para os habitantes a Norte do rio».

Incluía grande parte do distrito do Ribatejo, o distrito de Setúbal, todo o Alentejo e o Algarve e aqui aplica-se porque a brancura da cal, feita com o calcário, ilumina toda esta faixa de território. A expressão que deu o título à conferência também será familiar a alguns: é o título de uma obra de Urbano Tavares Rodrigues e do fotógrafo António Homem Cardoso, A Luz da Cal, que registou esses caminhos de Portugal.

O que faz a cal, que pontuou de branco a paisagem portuguesa a sul? A resposta é o calcário, que não serve só para isso. Comecemos pelo princípio, desconstruindo as palavras. «A pedra que dá luz ao Alentejo é o calcário. Se formos à raiz latina, de calcarius, que é relativo a cal. Cal em latim era  calx no singular, calces no plural. Este étimo entrou no vocabulário português, francês (calcaire), espanhol (caliza) e alemão (Kalstein). Só os ingleses, que gostam muito de ser diferentes, é que não usaram o cal e foram buscar o limestone. Qualquer delas se traduz por pedra de cal», invocou o geólogo, explicando a sua natureza. «O calcário é uma rocha sedimentar essencialmente constituída por calcite (carbonato de cálcio), por vezes associada a alguma dolomite (carbonato de cálcio e magnésio)». 

De uma forma ou outra, os calcários são «pedras que efervescem com os ácidos», lembrou Galopim de Carvalho, evocando a descrição do professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Torre de Assunção (1901-1987), que ainda apanhou no seu primeiro ano académico, e que em 1949 publica o primeiro livro de divulgação de ciência sobre Geologia em Portugal, na coleção Biblioteca Cosmos.

«Gente que na altura tentava dar alguma luminosidade ao cinzentismo que se vivia, como o professor Bento Jesus Caraça, que era o coordenador dessa coleção. Torre de Assunção escreve que os calcários são as pedras que efervescem com os ácidos, com vista à libertação de gás carbónico. Hoje diz-se dióxido de carbono, na altura dizia-se gás carbónico. Uma gota de ácido basta para libertar o dióxido de carbono aprisionado».

O caleiro é quem trata – e durante muitas décadas assim foi – desse processo, para quem o calcário é toda a pedra que, calcinada, se converte em cal, o que implicava ter 4/5 de carbonato de cálcio, se não já não faz boa cal. «Ao pôr a pedra dentro do forno, a temperaturas da ordem de 900 a 1100 graus centígrados, o carbonato de cálcio transforma-se em óxido de cálcio, que é a pedra que se comprava para fazer a cal para caiar. Quando se juntava água, fervia, uma reação química que desenvolve calor, em que o óxido de cálcio absorve a água e transforma-se em hidróxido de cálcio, que se chama cal apagada, enquanto o óxido de cálcio é a cal viva».

Mas há muito mais calcário à nossa volta para lá da brancura do Aquentejo. Além das pedreiras para fazer cal, em Portugal encontram-se pedreiras de calcário para fazer cantaria, como a Pedreira dos Salgueiros, na Serra dos Candeeiros. E daí vamos à designação de mármore, que ainda hoje se dá a alguns calcários. Uma herança muito antiga.

Em Roma, no primeiro século depois de Cristo, o naturalista Plínio (23-79), classificava como mármore todas as rochas utilizadas em cantaria, onde se incluía o calcário. «Ainda hoje a indústria de serração, se formos ver alguns catálogos de pedras ornamentais, chamam mármores a pedras que não o são. Serram rochas como granito mas continuou-se a chamar mármore todas as rochas ornamentais», lembrou Galopim de Carvalho.

Respirar o ar dos dinossauros

Como é característico das rochas sedimentares, e foi a lição da semana passada, o calcário pode ser biogénico, quimiogénico ou detrítico, consoante a sua composição. A grande maioria dos calcários que vemos são biogénicos, e quase todos são calcíticos e marinhos, com componentes como esqueletos e conchas de animais. 

«Ao construir os seus esqueletos, os seres vivos juntam os catiões de cálcio ao anião de carbonato bivalente negativo, sempre presente e abundante na água do mar e dos lares, porque a água dissolve o dióxido de carbono presente na atmosfera», explicou o professor. Logo aqui há uma curiosidade, porque quando se vê a efervescência nesta pedra, o dióxido de carbono que se liberta foi produzido pelo oxigénio e o carbono do ar contemporâneo da sua formação.

«Do tempo dos dinossauros, por exemplo. Se fizerem isso com calcário do Jurássico, podem respirar ar do tempo dos dinossauros. Costumo fazer esta experiência quando visito as escolas e as crianças adoram: meto uma tina grande com água e uma pedra de calçada lá dentro, deita-se um pouco de ácido clorídrico na água, a pedra começa a fazer efervescência e as crianças metem a cabeça por cima e respiram o ar dos dinossauros». 

A produção de calcários é mais intensa em águas litorais pouco profundas e mornas, onde há mais ecossistemas propícios à existência de carbonato de cálcio, próprias das regiões inter-tropicais, e espalha-se por milhões de anos. Entre os calcários biogénicos, o grupo mais comum resulta da acumulação de restos esqueletos de animais, chamados de bioacumulados. 

Em Lisboa, na Rua Sampaio Bruno, pode ver-se os restos de fundo marinho com briozoários, um exemplo desta acumulação de esqueleto calcário. «Fica perto dos Prazeres, onde há 23 milhões de anos era mar», explicou Galopim de Carvalho, lembrando o esforço para proteger este que é um dos geomonumentos da capital.

Mas há mais calcários que podemos ver, como o calcário negro de Mem Martins, que faz a pedra negra da calçada portuguesa. Calcários de águas pouco profundas. Outros calcários ornamentais incluem o Lioz, o azul Cascais e o vermelho de Negrais, dos mais conhecidos no país. Perto de Sintra, pode encontrar-se o xisto do Ramalhão, usado por exemplo no Convento de Mafra, um calcário marmoso pelágico, que foi afetado por outro processo geológico além da acumulação e petrificação, a instalação do corpo magmático que deu origem à serra.

Há depois os calcários quimiogénicos, que resultam de interações químicas no interior dos maciços. Entre as grutas calcárias mais famosas em Portugal contam-se Mira D’Aire ou Alvados.

Há muitas outras rochas calcárias singulares. Por exemplo o travertino, explorado a leste de Roma, e usado para construir o Coliseu de Roma. 

E não é só da história das civilizações que fazem parte, mas também da vida, sendo uma janela aberta da paleontologia. Nos tufos calcários de Condeixa, por exemplo, foram encontrados fósseis de hipopótamos e elefantes antigos que um dia viveram no território de Portugal, lembrou Galopim, que cruzou sempre estes dois mundos.

As lições vão continuar, por agora até julho, sempre às terças-feiras, por Zoom e em direto no YouTube. «Sinto-me como uma criança a brincar com legos. Para o ano não sei como será, talvez as pessoas se esqueçam e volto a repetir», disse, lamentando que não haja tantas perguntas como gostaria. São bases da geologia que gosta de transmitir, explicou.

«O que resta daqui é uma ideia de todos os processos que formam a natureza, ficarmos com a ideia de que as coisas não aparecem de um dia para o outro, sem explicação. Mais do que os nomes de cada uma das coisas, é o processo que leva à existência das coisas que é importante».