Cavaco Silva, humorista improvável e certeiro

Dá gozo ver a rapaziada enervada. Como se um homem que teve quatro maiorias absolutas fosse obrigado ao silêncio – penso que só quando derrubou Pedro Santana Lopes, com o artigo imortalizado como o da boa e da má moeda, a esquerda não o atacou.

Cavaco Silva sempre foi um homem sisudo, pelo menos para quem não o conhece pessoalmente, que é o meu caso, e nunca gozou de simpatia na generalidade da comunicação social. Fora daquele estilo institucional e duro – com o qual tenho pouco ou nada a ver, embora admire e respeite quem o é – só me lembro de uma situação em que saiu da ‘normalidade’: quando foi fotografado a subir a um coqueiro em São Tomé e Príncipe, numa imagem do inesquecível repórter Fernando Gaspar – um dos últimos jornalistas à antiga, que era doido por uma boa história e que a enchia de pormenores. Não creio que o Fernando Gaspar fosse admirador de Cavaco Silva, mas sei que veio encantado com a ‘caixa’ que sacou enquanto enviado especial do jornal.

Como disse, tirando isso, só vi imagens que queriam ridicularizar o então primeiro-ministro e depois Presidente da República, como a da célebre foto a comer bolo rei. Pois bem, qual não foi o mesmo espanto quando descubro em Cavaco Silva um humor que estava longe de imaginar que fosse possível. O texto de opinião que escreveu no Observador é genial e está cheio de ironia fina, mas, como de costume, logo as calhandreiras de serviço trataram de o atacar. Calculo que Cavaco tenha comigo essa qualidade de gostar de ser atacado. Dá gozo ver a rapaziada enervada. Como se um homem que teve quatro maiorias absolutas fosse obrigado ao silêncio – penso que só quando derrubou Pedro Santana Lopes, com o artigo imortalizado como o da boa e da má moeda, a esquerda não o atacou. Mas mesmo aí tenho algumas dúvidas.

Depois de tratar António Costa como colegas «no que à conquista de maioria absolutas diz respeito», o antigo líder do PSD continuou a dar recados: «Calculo que, na excitação da tomada de posse, se tenha esquecido de que vários desses passos resultaram do diálogo e do consenso com o seu partido». Cavaco referia-se ao tempo das suas maiorias absolutas, onde «foram dados passos que abriram novas perspetivas à sua geração e que facilitam agora a tarefa do seu governo».

Depois de ter enumerado a obra que deixou, nomeadamente as revisões constitucionais, a Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei das Finanças Locais, de ter acabado com o quase monopólio do Estado na comunicação social, de ter feito a reforma fiscal, que «instituiu o IRS e o IRC, substituindo sete impostos sobre o rendimento então existentes», tudo em diálogo com o PS, é natural que muitos tenham ficado com alguma azia.  Goste-se ou não de Cavaco, este tem uma obra para apresentar e de que pode orgulhar-se. Fez coisas más? Fez, algumas graves, como ter permitido a destruição da frota pesqueira ou da agricultura, além de outras.

Com a graça de falar na terceira pessoa, à jogador da bola, como muito bem notou João Miguel Tavares, Cavaco termina de uma forma desarmante: «Parafraseando a afirmação de V. Exa. no discurso da tomada de posse direi: ‘Faço parte de uma geração que se bateu contra a estatização da economia, a atrofia da sociedade civil e a queda do poder de compra dos portugueses e que se orgulha de ter contribuído para dar um passo significativo na aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE». Mas foi mais longe. «Agora, retirado da vida política ativa, mas preservando os meus direitos cívicos, estou certo de que, encerrada a fase da ‘geringonça’, o seu governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva».

Cavaco Silva que não me leve a mal, mas até parece que se inspirou num almoço divertido para escrever com tanto humor e tão certeiro. Chapeau!

vitor.rainho@sol.pt