A insustentável superficialidade das coisas a que nos fazem dar importância

Sem reflexão não há pensamento e, sem este, dificilmente pode existir sabedoria

por Francisco Gonçalves

Há alguns anos, o Município de Oeiras, no espaço de duas semanas, realizou dois eventos que nada tinham em comum. O primeiro, consistiu na cerimónia de entrega de chaves de fogos de habitação municipal. O segundo, um ‘madeiro de Natal’, que não é mais do que uma grande fogueira, à volta da qual as pessoas se reúnem.

Se questionados sobre qual destes eventos se reveste de mais importância, poucos teremos dúvidas em afirmar que é a entrega daquelas chaves. Qualquer um de nós percebe a diferença entre o essencial, a casa, e o acessório, a festa.

Curiosamente, no primeiro evento, não esteve sequer uma televisão. Esteve um jornal, e só! No segundo evento, estiveram as três televisões generalistas portuguesas, com honras de reportagem nos telejornais da noite.

Sabemos que a notícia é o insólito, ‘o homem que mordeu o cão’, mas há algo de muito errado quando o jornalismo dá mais importância ao entretenimento, que tem a sua importância, do que ao essencial das nossas vidas.

Recordei este episódio ao ver a cobertura mediática do processo Johnny Depp/Amber Heard, o qual, mais do que notícia, é um momento de voyeurismo coletivo na vida de duas estrelas de cinema.

O tempo de antena nas televisões e rádios, o espaço ocupado por este caso nos jornais, em papel ou online, há muito superou o absurdo.

A cultura da superficialidade, relativismo moral e niilismo em que vivemos dá atenção ao supérfluo e tira o foco do essencial, analisando tudo com superficialidade, sem analisar em profundidade umas coisas ou comentando outras até à exaustão.

Será que uma democracia que promove superficialidade e espetáculo tem cidadãos efetivamente informados? Claro está que a liberdade individual dá a cada um o direito de escolher o que quer ver, ler ou ouvir. Essa não é a questão. O ponto está nas notícias às quais os media, em geral, dão relevância e à forma como o fazem.

Portugal é, sabe-se, um País com uma percentagem elevadíssima da população em risco de cair na pobreza. Além da questão surgir de quando em vez na comunicação social, normalmente quando são publicados estudos que confirmam estes dados, a questão é apenas abordada quando há campanhas de recolha de alimentos ou quando o Presidente da República, vai para a rua dar um prato de comida aos sem-abrigo.

O mesmo se passa quando as notícias são casos judiciais, nas quais se ensina a odiar mais o criminoso do que o crime, nas alterações climáticas, pois a fotografia de choque do secretário-geral das nações unidas vale mais do que mil palavras de cientistas, ou no futebol, transformado num espetáculo de insultos que se sobrepõem aos golos e às fintas de encantar.

Esta superficialidade e este gosto pelo sangue que, em quase tudo, nos marca o quotidiano, gera comunidades de indiferença, de pouca ou breve atenção. Comunidades de consumo imediato, cada vez mais de rede social e cada vez menos de livros e reflexão.

Sem reflexão não há pensamento e, sem este, dificilmente pode existir sabedoria. O mundo do politicamente correto é aqui e agora: enunciam-se princípios, à primeira vista bonitos, até profundos, sem se pensar exatamente nas suas consequências.

Todas as decisões que afetam a nossa vida coletiva (mesmo as do 4.º poder) devem ter subjacente conhecimento e sabedoria. Quando tudo é superficial, nada tem verdadeiramente importância.