Angela Merkel e o país que não sabe ser potência

A Alemanha é um país que, desde a II Guerra Mundial, não lida bem com o facto de ser potência. A história trágica do nazismo e os horrores da II Guerra Mundial criaram um sentimento de culpa e de receio de si próprio ao Estado alemão, que condiciona a uma permanente tentativa de autocontrolo, procurando…

por Francisco Gonçalves

A entrevista da ex-chanceler alemã, dos últimos dias, na qual abordou o caminho histórico para a atual guerra na Ucrânia, expôs os seus graves erros de avaliação e a estratégia política errada da Alemanha (e por associação sua, da França), em relação à Rússia de Putin, trouxe mais inquietação do que esclarecimento.

A Alemanha é um país que, desde a II Guerra Mundial, não lida bem com o facto de ser potência. A história trágica do nazismo e os horrores da II Guerra Mundial criaram um sentimento de culpa e de receio de si próprio ao Estado alemão, que condiciona a uma permanente tentativa de autocontrolo, procurando evitar cair nos excessos do passado.

Há, nesta atitude, uma acomodação pós-histórica, que naturalmente implica a rejeição do passado imperial e revisionista, assumindo-se como potência benigna, ou uma ‘potência não potência’. 

Tendo conseguido a sua própria ‘normalização’, os líderes alemães pareciam acreditaram que era possível ‘normalizar’ a Rússia. A Rússia é o país com maior área do mundo, tem recursos e potencialidades imensas, era, à partida, se esquecesse o desejo imperial, normalizável”.

A procura do equilíbrio com a Rússia tem sido recorrente na ação externa alemã: a frente russa foi a preocupação do pacto ‘Ribbentrop-Molotov’ (ainda que temporário no quadro de guerra), a Ostpolitik de Willy Brand foi outro passo no mesmo sentido e, recentemente, a aceitação da dependência energética alemã em relação à Rússia era, em grande medida, uma prova da confiança entre os dois Estados.

Se as invasões da Geórgia ou da Crimeia tinham exposto os erros políticos e diplomáticos na relação da União Europeia com a Rússia, amplificados com a atual invasão que fez colapsar o quadro de relações anterior, a entrevista de Angela Merkel, desta última semana, esmaga absolutamente o seu legado, levantando importantes interrogações.

Quando a ex-chanceler diz que sabia da ambição de Putin em destruir a União Europeia, como podia aceitar a relação de dependência energética e como podia querer desenvolver o Nordstream 2?

Se Angela Merkel sabia que a vontade de Putin era destruir a União Europeia, por que razão não foram alteradas as políticas de defesa e as políticas em relação à Rússia?

Não é possível ler/ouvir esta entrevista sem nos sentirmos angustiados pelo misto de irresponsabilidade e incapacidade de decisão perante a ameaça. Também não é possível não sentir repulsa pelas consequências inenarráveis da atitude dos líderes alemães e franceses, particularmente quando sabemos os ganhos pessoais de figuras como Gerhard Schroeder ou François Fillon, na relação com a Rússia.

Se a ex-chanceler alemã dissesse que tentaram «normalizar» a Rússia e que a estratégia falhou, o erro era perdoável. Dizer que sabia o que estava em causa e, perante isso, seguir uma política de dependência energética, com tendência para aprofundamento dessa dependência, é uma abjeção. 

Quando diz que não se arrepende da estratégia diplomática que seguiu, juntamente com alguns presidentes franceses, estará Angela Merkel a pensar que essa estratégia resultou nas valas comuns da atual guerra da Ucrânia? 

Merkel, ficou claro, não esteve à altura da liderança que se exigia da Alemanha. Assumiu o papel de ‘alguém que esteve a alimentar o crocodilo, à espera de ser a última a ser devorada’. 

Perante a barbárie que nos entra em casa todos os dias (quem vem acontecendo desde 2014), recordamos as palavras do Papa Francisco: «A indiferença mata!».