Crescer

Demorei muito tempo a habituar-me a mim. E a perceber que nem todos estão sempre a pensar na morte. E a perceber que podia gostar de poesia, decoração e flores e que isso não fazia de mim maricas.

Em miúdo tinha muitas insónias. Crescer não foi fácil. Crescer dói porque é a primeira vez que se faz tudo: primeira vez que se pensa na morte, primeira vez que não se dorme, primeira vez que nos morre um cão. Tudo era novo e não se percebia nada. Olhava-se para o lado e os putos ainda jogavam Pokémon e tinham ranho no nariz – e nós achávamo-nos o máximo porque já víamos Herman Enciclopédia e ouvíamos GNR. Olhava-se para o lado e os putos ainda liam o Bando dos Quatro – e nós achávamo-nos o máximo porque líamos o Elogio da Loucura (só para fazer género, nunca acabámos).

Com onze anos, as insónias e a obsessão com a morte doíam porque mais ninguém as tinha – achava. O ser humano tem esta particularidade de gostar de não ser ‘o único’. Gostar de ser normal. Crescer é difícil porque as coisas atropelam-nos e nós ainda não estamos habituados a ser atropelados. Ficamos mais velhos e percebemos que a vida é mesmo assim.

«Demorei muito tempo a habituar-me a mim».

A frase é do Pedro Paixão. Demorei muito tempo a habituar-me a mim. E a perceber que nem todos estão sempre a pensar na morte. E a perceber que podia gostar de poesia, decoração e flores e que isso não fazia de mim maricas. E a perceber que é uma virtude minha conseguir falar com facilidade dos meus sentimentos – e escrevê-los. E a perceber que a sensibilidade é a melhor coisa que tenho – que ter o coração barrado na pele é a maneira mais bonita de estar no mundo. E aprende-se a gostar disso quando lemos e percebemos que, afinal, não somos especiais.

Quando lemos e percebemos que não somos especiais por estarmos sempre a pensar na morte. Quando lemos Cioran e percebemos a miséria que ele é e nós não somos. Quando lemos Pessoa e percebemos que preferimos a burrice àquela genialidade. Quando lemos Weil e celebramos com doze anos estarmos a jogar Counter-Strike e não a aprender grego arcaico. Também se aprende que não se é. Crescer é abrir horizontes e perceber que não se é especial. É respirar de alívio quando encontramos alguém mais doido do que nós, é sentir conforto quando conhecemos alguém com as mesmas inquietações, é admirar instantaneamente o que é mais culto. É bom ser-se banal – mas só com consciência de que se o é. Deve ser horrível viver sem consciência – quer de classe, quer de conhecimento, quer de talento. 

Hoje, quando penso na morte, ‘despenso’ na morte. Hoje, quando tenho insónias, só fico em pânico as primeiras horas – depois borrifo-me. Hoje, quando me morre um cão, morre-me um cão – não a razão do meu viver. É frio? Não sei. Sei que crescer mune-nos de uma carapaça de tartaruga que nos protege do que outrora doía. E eu prefiro ter essa carapaça a não a ter. Quando era novo era melancólico sem razão. Hoje sou melancólico sem razão. Mas hoje já sei que sou melancólico sem razão, enquanto quando era novo não sabia que era melancólico sem razão. Dar um nome às coisas, atribuir-lhes um lugar, uma história, esvazia-as. Normaliza-as. E isso só se consegue crescendo.

Crescer é bom. Dá-nos arcabouço para domar a vida: vê-se razão onde antes se via confusão e vê-se um baloiço onde antes se via um abismo. E a vida, essa, vai-se fazendo boa.