O ditador e a poesia. Um ditador decide prender os poetas e proibir a poesia

‘A poesia é a maior ameaça ao seu governo, senhor presidente. Os outros opositores dizem o que pensam, são previsíveis, podemos controlá-los. Os poetas, não’. 

O ditador estava preocupado com o estado do país. Corriam rumores de que o povo andava triste, tinha perdido a alegria de viver, não demonstrava iniciativa. O ditador não compreendia por que tal sucedia. Afinal, ele tomava conta deles, dava-lhes tudo o que eles precisavam, resolvia-lhes todos os problemas. 

«Porquê?», perguntava-se, «o que terá acontecido?».

Não sabia a resposta, mas tinha a certeza de que só poderia ser algo muito grave. Os seus opositores – todos presos – diziam que a razão era a falta de liberdade. «Tolices», pensava o ditador, no seu país não existia nenhuma falta de liberdade; toda a gente podia sair de casa, ir ao futebol e passear com a família quando quisesse. Só as pessoas que criavam problemas é que eram presas. Os restantes cidadãos eram até mais livres do que os povos de outros países porque estavam protegidos por si.

Decidiu então reuniu-se com os seus três conselheiros.

– Quero saber o motivo do meu povo andar deprimido. A minha reputação está em jogo. Dou-vos uma semana para me apresentardes relatórios.

Os conselheiros encolheram-se e olharam uns para os outros.

– Os motivos são complexos, senhor presidente… – disse um deles.

– A culpa é dos nossos inimigos… – disse outro.

– O povo é assim mesmo, nunca está contente com nada… – disse o terceiro conselheiro.

– Calai-vos – gritou o ditador. Quero provas concretas. E se dentro de uma semana não conseguirdes descobrir o verdadeiro motivo, ides todos para a cadeia. Está encerrada a sessão.

Uma semana depois o ditador voltou a reunir-se com os três conselheiros. Estavam pálidos, com olheiras e magros. O ditador mandou-os sentar e começou a interrogá-los.

– Começas tu – e apontou o dedo a um dos homens.

O visado fechou os olhos, engoliu em seco, e só então falou.

– Senhor presidente… estudei o problema e cheguei à conclusão de que o povo anda deprimido por causa… por causa do aquecimento global…

– Idiota. Guardas, prendam-no! – gritou o ditador. E agora fala tu – e apontou o dedo a outro conselheiro.

Este fechou os olhos e pareceu entoar uma reza antes de falar.

– Senhor presidente… auscultei os cidadãos e conclui que… que as pessoas estão preocupadas com a sua saúde…

– Quem vai ter problemas de saúde és tu. Guardas, prendam-no.

Sabendo-se perdido, o terceiro conselheiro aceitou o seu destino e, de entre as várias teorias que tinha inventado para agradar ao ditador, escolheu aquela que lhe pareceu mais disparatada. Pelo menos, gozaria um pouco com ele.

– Senhor presidente, a razão é a poesia…

O ditador não contava com aquilo. Arregalou os olhos.

– O quê? 

– Sim, senhor presidente. O povo anda a ler demasiada poesia e depois fica triste.

O ditador franze o cenho.

– A poesia põe as pessoas tristes? Eu pensava que os poetas falavam de amor, felicidade, gozo da vida.

– Alguns poetas sim, mas outros só compõem versos deprimentes. Ouça este poema: 

"Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!.’’ 

O ditador faz uma careta de nojo.

– Realmente é horrível! Essa poesia até a mim me deprime.

O conselheiro abre as palmas das mãos – uma gota de suor escorre-lhe pela testa.

– Está a ver? É esta a verdadeira razão do povo estar infeliz.

– Malditos poetas. Eu bem sabia que havia alguma coisa errada com estes tipos. Que tipo de homem ou mulher é que perde o seu tempo a fazer versos?

– São pessoas fracas, incapazes de suportar os problemas da vida. Os homens verdadeiros, como o senhor presidente, pegam em armas e lutam. Os poetas baixam os braços e choram. A poesia é isso mesmo: uma choradeira sem fim.

– Tens razão, os poetas são uns desgraçados que corrompem a sociedade.

– Muitos deles suicidam-se para provarem que a vida não tem sentido. Por muito que um governante faça, os poetas deitam tudo abaixo. E basta-lhes uma caneta e uma folha de papel.

– Nunca pensei que pudesse ter um inimigo assim.

– A poesia é a maior ameaça ao seu governo, senhor presidente. Os outros opositores dizem o que pensam, são previsíveis, podemos controlá-los. Os poetas, não. Dissimulam as suas intenções e nunca sabemos o que andam a tramar. 

– A poesia é uma arma…

– Eu diria que é um veneno… 

– A partir de hoje, acabaram-se os poemas. Prende esses tipos!

No dia seguinte, todos os poetas e poetisas que tinham publicado livros ou escrito versos para revistas e jornais foram presos. Foi decretado que doravante a poesia, escrita ou declamada, ficava proibida. A posse destes livros seria considerada um ato de terrorismo. A população foi obrigada a entregá-los e, ao som de tambores, foram queimados numa praça. Pelo ar rimaram labaredas e enrolaram-se versos de fumo. 

– Isto é para o vosso bem – disse um dos guardas para as pessoas que assistiam à queima dos seus livros.

O ditador fez algumas aparições públicas e comprovou que já se notavam algumas melhorias no humor da população. Viu uma adolescente a sorrir, um casal abraçado e um doido a dançar na rua. «Isto leva algum tempo, mas daqui a alguns meses já deverão ser felizes outra vez» – disse para consigo. Ter erradicado a poesia fora a melhor decisão da sua vida. 

Foi então que numa festa em honra de um diplomata recém-chegado conheceu Madalena, a sua esposa. Era uma ruiva de olhos verdes e lábios carnudos, alta e elegante. Tinha um vestido lilás colado ao corpo e sapatos de tacão alto.

Quando caminhava, as ancas ondulavam, mas os seios mantinham-se firmes. O ditador nunca vira uma mulher assim. A voz dela silenciou o barulho à volta. O toque da sua mão deixou-o arrepiado. Durante o serão, seguiu-a com os olhos e tentou manter-se perto dela, mas não foi capaz de lhe falar. O coração atravessava-se-lhe na garganta e a boca fechava-se como uma cela. 

Quando se deitou, sonhou com ela o resto da noite.

No dia seguinte mandou chamar o único conselheiro que lhe restava.

– Eu quero a mulher do embaixador. A ruiva…

O conselheiro percebeu que estava de novo em apuros.

– Senhor presidente, esta mulher é diferente das outras. Não pode raptar a esposa de um diplomata. Haveria uma guerra…

O ditador avançou até uma janela e ficou a olhar as nuvens. A voz saiu-lhe num sussurro.

– E qual é o problema?

– O problema, senhor presidente, é que o país dele é mais forte do que o nosso.

O ditador coçou o queixo durante alguns segundos.

– E se ela vier ter comigo de livre vontade? Já não haverá nenhum problema, pois não?

O conselheiro encolheu os ombros.

– Nesse caso, suponho que não…

O ditador volta-se para o conselheiro e dá uma gargalhada.

– Pois então, será fácil. Como poderá ela resistir-me?

O conselheiro forçou um sorriso.

– Sim, como poderá ela resistir-lhe…?

Nesse mesmo dia, o ditador enviou um convite ao embaixador para uma festa dentro de uma semana. Porém, quando se olhou ao espelho não pôde evitar comparar-se com o marido de Madalena: não era tão alto e não estava em tão boa forma, tinha mais rugas na cara, uma mancha de sangue no olho direito e uma cicatriz no queixo. As outras mulheres diziam que isso aumentava o seu charme, mas, pela primeira vez na vida, teve dúvidas. Chamou o seu alfaiate para lhe fazer um fato novo, deixou que o barbeiro lhe aparasse as sobrancelhas e mandou comprar um perfume.

Madalena apresentou-se com um vestido preto e uns sapatos de verniz. O seu cabelo parecia estar em chamas e os seus olhos cintilavam como pirilampos. Quando a viu, o ditador sentiu o coração bater forte. Beijou-lhe a mão delicadamente como se encostasse os lábios na pele de um recém-nascido. O conselheiro desviou o marido para outra sala deixando-lhe o caminho livre e, desta vez, não lhe faltou a coragem para a abordar. Convidou-a a sentar-se numa varanda com vista para o mar e ofereceu-lhe champanhe. A noite estava quente, brilhavam estrelas no céu, o luar iluminava a água. O ditador conversou com ela sobre os seus temas favoritos: o governo do país, as medidas em prol dos cidadãos, o futuro da humanidade. 

Estava tudo a correr bem quando ela diz algo inesperado.

– Se realmente deseja o bem do seu povo, deve libertar imediatamente os presos políticos.

O ditador estremece como se tivesse levado um choque elétrico.

– Perdão, mas não existem presos políticos no meu país. Eu apenas prendo pessoas perigosas para a sociedade, pois é esse o meu dever.

Madalena levanta-se. Uma brisa espalha-lhe os cabelos.

– Se não prometer que vai libertar essas pessoas, não voltarei a falar consigo.

O ditador levanta-se também e abre os braços entornando a garrafa de champanhe.

– Está bem, prometo. Se isso a faz feliz, amanhã serão libertados.

No fim da festa, o ditador viu uma estrela cadente – eis o sinal de que tudo iria correr bem. Afinal, que importância tinha libertar aqueles patetas? Dali a uns tempos voltaria a prendê-los de novo. Por agora, o importante era agradar àquela deusa. Libertava até os poetas, se ela lhe tivesse pedido.

Dias depois, planeava o ditador o próximo passo para a seduzir – uma nova festa? enviar-lhe flores? uma parada militar? – quando recebe uma mensagem dos seus espiões: 

«A mulher do embaixador apanhou um avião e foi-se embora…». 

O ditador não quis acreditar. Deveria haver algum engano. Como poderia aquela mulher tê-lo deixado sem sequer se despedir? Estava praticamente seduzida.

Pegou no telefone e ligou para o embaixador.

– Senhor embaixador, disseram-me que a sua esposa partiu…

– Sim, não se adaptou ao clima e à comida…

O ditador deixou cair o auscultador e ficou com o olhar perdido durante algum tempo. Nesse dia cancelou todos os compromissos e dispensou os seus criados.

Nos dias seguintes o ditador continuou a isolar-se, dando ordens para ninguém o incomodar quando se fechava no seu gabinete. Às refeições comia pouco e bebia demais. Na cama enfrentava noites de insónia. Quando sonhava, Madalena aparecia-lhe nos braços de outros homens tomada de intenso gozo. Aos poucos, começou também a emagrecer, a ficar pálido e a ganhar olheiras; a mancha de sangue no olho dilatou-se e a cicatriz no queixo escureceu. Deitou fora o perfume. Vagueava pelo palácio como um fantasma e ficava horas à varanda a olhar para o mar. Se alguém lhe perguntava se precisava de algo, não respondia; mas, por vezes, falava sozinho. Por fim, desinteressou-se do governo do país e deixou que o conselheiro tomasse decisões por ele. 

Uma manhã, a porta do quarto do ditador abre-se num estrondo e surge um grupo de soldados que lhe apontam metralhadoras. Atrás deles, usando um fraque, estava o conselheiro.

– Informo-o que foi deposto. Agora o presidente sou eu. Vista-se por que vai ser fuzilado.

O ditador encolheu os ombros e obedeceu sem um protesto. Vestiu o fato novo, calçou os sapatos sem as meias e deixou-se algemar. Os soldados arrastaram-no como se fosse um preso qualquer. Duas horas depois estava morto. 

O povo saiu à rua e deitou foguetes. Toda a gente sorria e se abraçava.

No dia seguinte, estava o novo ditador a instalar-se no palácio quando, numa gaveta de uma secretária, descobre uma caixa de marfim decorada com esmeraldas. Supôs que deveriam estar ali documentos importantes. Mal a abriu, sentiu um perfume. Depois encontrou várias folhas escritas à mão. Começou a ler a primeira:

«Madalena, luz da minha vida
levaste contigo o meu coração,
ai de mim que estou perdido…»