Um mês depois de um juiz que defendia (ou defendeu) a penalização do aborto ter sido chumbado em Portugal para membro do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal dos EUA revogou uma lei que permitia o aborto em todo o país.
Essa lei, ao contrário da maioria das leis que vigoram nos Estados Unidos – que são estaduais ou municipais –, era uma lei nacional.
A própria pena de morte varia de Estado para Estado.
Mas a permissão do aborto era extensiva a todo o território.
A esquerda naturalmente mobilizou-se e tem havido grandes manifestações contra a decisão do Supremo.
O que não deixa de ser contraditório: a esquerda é, de uma forma geral, favorável à descentralização.
A descentralização é mais democrática porque dá a cada Estado a liberdade de decidir por si, de acordo com a opinião dos seus cidadãos, não resultando de uma imposição do poder central.
Mais uma vez se constata que a esquerda (e a direita não é diferente…) não se regula por princípios mas por interesse: os princípios só são bons se vêm ao encontro das suas opiniões; caso contrário, são maus.
Sendo esta decisão do Supremo Tribunal legítima, e mais democrática, a esquerda contesta-a porque discorda dela.
Mas vamos à questão de fundo. Há uma frase dos defensores do aborto onde reside o nó do problema: «As mulheres têm o direito de dispor do seu próprio corpo».
Parece legítimo.
Sobra, porém, uma pergunta: a nova vida que uma mulher grávida transporta dentro de si faz parte do seu corpo – ou é outro corpo?
Faz parte do corpo da mulher – como o fígado, os olhos ou as mãos – ou é um corpo diferente, um novo ser?
E aqui entramos num novo problema.
Quando se inicia a vida? Quando é que um feto pode considerar-se verdadeiramente uma nova vida?
Ora, eu só vejo uma resposta para isto: a partir do momento da conceção.
Aí se inicia a vida.
Na gestação de um feto, não há outro momento que possamos identificar.
Não podemos dizer: um feto só corresponde a uma vida a partir das duas semanas, ou das sete, ou das dez, ou das vinte.
Qualquer afirmação nesse campo é perfeitamente arbitrária – e permite todas as manipulações.
Mas o momento da conceção é incontestável.
Não admite especulações.
A partir daí existe vida.
E essa nova vida deixa de ser propriedade da mulher.
Sobre ela, a mãe não pode ter direito de vida ou de morte.
E nessas condições o aborto é ilegítimo – seja em que altura for da gestação.
Põe-se agora outra questão, de outra índole: a criminalização das mulheres que abortam.
Recorde-se que o debate sobre o aborto começou, não à volta da ‘permissão’ do aborto, mas sim da ‘despenalização’ do aborto.
Só que, como acontece em todas estas questões ‘fraturantes’, a partir do momento em que se entreabre uma porta, não há como impedir que ela se abra de par em par.
E, uma vez aceite a despenalização do aborto, rapidamente se caminhou para a sua liberalização quase total.
Tenho como mais ou menos consensual que a criminalização de mulheres que fizeram aborto é uma situação cruel – até porque a decisão de o praticar foi quase sempre difícil e traumática.
Mas, por outro lado, uma lei não pode consagrar uma prática que interrompe uma vida humana.
As leis têm de se fundar em princípios – e nenhuma lei digna desse nome pode permitir tal coisa.
O que fazer então?
Como compaginar os princípios com a realidade?
Só vejo uma maneira. Se os ‘princípios’ devem nortear as leis, a aplicação das leis deve ter em conta as ‘circunstâncias’.
A lei não pode aceitar o aborto – mas a Justiça tem a obrigação de analisar a situação concreta em que cada aborto é praticado.
E aí as mulheres que abortaram não têm obrigatoriamente de ser condenadas – a menos que o tenham feito de forma gratuita e inteiramente injustificada.
Há situações e situações.
Há casos e casos.
Nem todos os abortos podem ser metidos no mesmo saco – mas isso só à Justiça cabe avaliar.
Comentando a revogação da lei que permitia o aborto em todo o país, Joe Biden disse que a América retrocedeu 150 anos.
Eu penso exatamente o contrário: com a liberalização do aborto é que houve um retrocesso civilizacional.
A interrupção de vidas humanas é uma prática bárbara e que a civilização não deveria tolerar.
Nenhuma mãe deveria ter o direito de decidir sobre uma vida que transporta dentro de si.
Na Roma antiga é que os pais decidiam sobre a vida dos seus filhos.
P.S. – O episodio protagonizado por Pedro Nuno Santos e Antônio Costa merece uma analise mais atenta, que farei na próxima semana.