Ucrânia. Zelensky mostra-se furioso com a escala da infiltração russa

Zelensky afastou a sua procuradora-geral e o chefe das secretas, acusado de ser o seu testa-de-ferro, alegando que estes deixaram que redes de espiões russos se instalassem.

O afastamento do chefe das secretas domésticas ucranianas, Ivan Bakanov, bem como da procuradora-geral, Iryna Venediktova, esta segunda-feira, deixou a nu não só a extensão da infiltração russa no aparato de segurança da Ucrânia, mas também as disputas políticas no seio do círculo próximo de Volodymyr Zelenskiy. O Presidente justificou a decisão notando que mais de 60 dirigentes das poderosas agências lideradas por Venediktova e Bakanov tinham passado para o lado da Rússia. Outros frisam as recentes disputas entre as chefias militares ucranianas e Zelenskiy, que há muito era acusado de colocar gente despreparada em altos cargos, tendo como principal critério a sua lealdade pessoal ao Presidente, como no caso de Bakanov.

Bakanov, de 47 anos, um antigo colega de escola do Presidente, na cidade de Kryvyi Rih, fora colocado à frente do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU, na sigla ucraniana) em 2019. A sua nomeação para chefe das secretas, liderando uns 30 mil agentes, foi amplamente questionada. O currículo de Bakanov incluía pouco mais que a gestão da produtora televisiva Studio Kvartal-95, criada por Zelensky quando este era conhecido como comediante. Ou o seu papel na campanha deste à presidência, tendo ainda ocupado o posto de líder do partido Servo do Povo, de Zelensky – naturalmente, a ideia do líder de um partido encabeçar as secretas causou receios entre a oposição.

O facto de Bakanov posteriormente ter sido apanhado nos Pandora Papers, sendo acusado de ser o testa-de-ferro do Presidente, não ajudou. O diretor da SBU controlava parte de uma ampla rede de offshores, de amigos de juventude de Zelensky, todos ligados a Kryvyi Rih, segundo apurou o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla inglesa). Tendo Zelensky transferido a sua parte num deste offshores para Bakanov, meras semanas antes de ganhar as eleições. 

Para piorar a situação, Bakanov herdou uma agência com profundos problemas estruturais. Tinha o complexo desafio de enfrentar a infiltração russa, numas secretas com um défice brutal de agentes experientes e de confiança, tendo quase tido de ser reconstruídas do nada em 2014, após a anexação russa da Crimeia e a insurgência separatista no Donbass. 

É que não só “o SRU sempre teve laços próximos com as antigas redes das secretas soviéticas”, como essas ligações a Moscovo se aprofundaram ainda mais durante o Governo de Víktor Yanukóvytch, lê-se no livro The Handbook of European Intelligence Cultures (Rowman & Littlefield, 2016), editado por Bob de Graaff e James Nyce.

Foi a implantação de células russas nas secretas ucranianas que permitiu uma anexação tão rápida da Crimeia. Sendo que, logo após a revolução de Euromaidan, as novas autoridades ucranianas deparam-se com a sede do SRU vazia, tendo todos os seus ficheiros – incluindo registos de 22 mil agentes e informadores – sido levados para a Rússia. Levando Kiev a varrer uns 90% dos oficiais do SBU, criando um clima em que “toda a gente suspeita de toda a gente”, descreveu um agente citado no The Handbook of European Intelligence Cultures.

Com os serviços de contra-inteligência neste estado, e com toda uma rede de informadores dos tempos de Yanukóvytch à disposição do Kremlin, não espanta que desde o início da invasão russa, tenham sido abertas mais de 650 investigaçõees a agentes de segurança ou a funcionários judiciais, por suspeitas de colaboração com os invasores, segundo informou Zelensky. 

Traições O afastamento de Iryna Venediktova – gabada pelo Ocidente devido ao seu papel na investigação dos crimes de guerra durante a invasão russa da Ucrânia – surpreendeu, mas não o de Ivan Bakanov. Zelensky há muito que já estava farto do seu velho amigo, avançara o Politico no final do mês passado, citando fontes próximas. 

 A insatisfação do Presidente com Bakanov também não espanta. Os vários ramos das forças armadas ucranianas mostraram uma prestação muito acima do esperado antes da guerra, mas não as SBU. Até se poderia argumentar que uma grandes vitórias da Rússia, a tomada de Kherson, logo nos primeiros dias da invasão, foi culpa das secretas. 

Esta cidade portuária no sul, maioritariamente russófona, era um dos principais alvos do Kremlin – que há muito se queixava da construção de uma barragem em Kherson, cortado cerca de 85% do abastecimento de água da Crimeia – e foi conquistada quase que sem resistência. Zelensky acusou um “traidor”, o general Serhiy Kryvoruchko, chefe do SRU na região de Kherson, de ordenar uma retirada à revelia do Governo central. 

Supostamente, Kherson, separada da Crimeia por um labirinto de lagoas e pântanos que dá pelo nome de Syvash, ou Mar Podre, deveria ser difícil de conquistar. A ponte de Chonhar, um dos poucos acessos à região, estava cheia de explosivos, tendo os guardas instruções para a rebentar caso as forças russas invadissem, admitiram dirigentes de Kiev à Al Jazeera – só que isso nunca aconteceu, permitindo que dezenas de milhares de invasores a atravessassem, com centenas de tanques.

Em paralelo, agentes secretos ucranianos, militares e polícias começavam misteriosamente a desaparecer de Kherson, contaram testemunhas ao Economist. No caso do braço-direito do general Kryvoruchko, o coronel Ihor Sadokhin, o chefe da equipa de contra-terrorismo local, estava ocupado a indicar às forças russas vindas da Crimeia as posições das minas ucranianas, acusou o Governo de Zelensky. Além de direcionar bombardeamentos aéreos dos invasores. 

Daí que se tenha começado a esgotar a paciência do Presidente para com Bakanov, sob a alçada do qual todas estas suspeitas traições ocorreram. Aliás, a suspensão do líder da SBU foi anunciada dois dias após Oleg Kulinich, chefe dos espiões ucranianos na Crimeia, ser detido sob acusação de ser um agente duplo, a soldo do Serviço Federal de Segurança (FSB, na sigla russa), as secretas militares do Kremlin.