Tour. Quando o sol não nasceu

Eis que mais uma Volta à França chega ao fim. Nada como olhar para trás e encontrar a pior etapa de toda a sua centenária história.

Amanhã, para a excitada agitação dos amantes de ciclismo e para o aborrecimento daqueles que se estão absolutamente nas tintas para as rodas pedaleiras e que prefeririam a calma d’une petite promenade, fecham-se os Campos Elísios para que, no centro de Paris, a capital mundial do desporto velocipédico, se ponha um ponto final em mais uma Grande Boucle, isto é, mais concretamente, a 109.ª edição da Volta à França em Bicicleta.

Nunca resisto, confesso, em alturas como esta, desfolhar as árvores da história e de me perder por entre os bosques das lembranças em busca de episódios que justifiquem porque, ao longo dos tempos, exibições de caráter coletivo continuam a preencher o imaginário de gente que não sabe sequer onde tudo começou. Em tempo de Volta à França, revolva-se o Tour como madame Curie revolveu a pechblenda em busca do rádio, e traga-se de novo à superfície a lenda dos nomes que fizeram dele a maior corrida ciclística do mundo.

David Guénell, jornalista, cronista, estudioso, escreveu certa vez: «En 115 ans, les participants du Tour de France ont tout enduré. Ils ont subi toutes les souffrances, éprouvé toutes les misères, ont dû lutter contre les éléments, contre leurs adversaires et même, parfois, contre les organisateurs et leurs règlements absurdes». Este texto veio a público há quatro anos e a propósito daquela que terá sido a pior, a mais bruta, a mais violenta e exigente etapa de toda toda a história da Volta à França. E ouvidos os maiores especialistas, não restaram dúvidas: 1926, 10.ª etapa, Bayonne-Louchon! 326 quilómetros por entre montanhas.

Correu-se, nesse ano, a maior Volta a França de todos os tempos: 5.745 quilómetros. O percurso foi desenhado de forma a pisar quase por completo todas as fronteiras do Hexágono, mesmo as marítimas. E as montanhas, sempre as montanhas: foi preciso trepá-las no início e no fim da prova. 17 etapas: início a 20 de junho e final no dia 18 de julho. Pela primeira vez a partida não teve lugar nem em Paris nem nos arredores. Tudo teve início em Evian.

Urinando nas mãos!

A etapa entre Bayonne e Luchon não parecia ter nada que fizesse dela um quebra-cabeças. Já se tinham realizado outras bem mais longas. E, no entanto, havia pormenores que permitiram que uma aura de misticismo crescesse em seu redor: o desnível de altitude, que atingia 5500 metros, o tempo execrável que se fez sentir nesse dia 6 de julho, as estradas que se tornaram praticamente intransitáveis. E aqueles pontos de nomes mágicos que surgiam nos caminhos que levavam aos picos brancos de neve: Aubisque, Tourmalet, Peyresourde…

Duas horas da manhã. Os ciclistas juntam-se em frente da Brasserie Miremont para assinarem as folhas de partida. O mais tranquilo parece ser o belga Lucien Buysse. Confia que não tardará a resgatar a camisola amarela ao seu compatriota Gustaaf Van Slembrouck. Sabe que este é um bom ciclista mas ninguém acredita que tenha arcaboiço para a manter por muito tempo. Seis minutos e sete segundos os separam.

Buysse não é um corredor particularmente elegante, parece estar sempre em esforço. Mas é um buldogue das estradas e ataca desde início, ainda o dia não nasceu. Conhece o percurso como a palma das suas mãos: já o percorreu por seis vezes. A lama prende os pneus das bicicletas, muitos são obrigados a levá-las pela mão até encontrarem forma de retomarem o controlo sobre os pedais.

Ottavio Bottecchia, o primeiro italiano a vencer o Tour, campeão das últimas duas edições, sofre brutalmente com a descida da temperatura. A certa altura para, pousa a bicicleta, e desata a chorar como uma criança na berma da estrada. Adelin Benoît, outro belga que estivera em grande no ano anterior, sofre uma queda brutal. Chegará a Luchon de automóvel.

Buysse força. Tem 1’45 sobre Huysse e Parmentier, 2’40 sobre Dejonghe e 3’30 sobre Tailleu. Benoit já levava 6’20 de atraso e, Bottecchia, renascido, estava a 7’40. Uma mistura perigosa de silex, pedras e ervas daninhas provocam furos frequente e a chuva não dá descanso aos corredores. O sol nunca chegou a aparecer.

Um nevoeiro, uma penumbra, rodeia o pelotão. A visibilidade não vai para além dos 30 ou 40 metros. É tanta a concentração exigida para não desistir que alguns se esquecem de comer. Dejonghe mastiga umas raízes de bambu. Tem as mãos tão geladas que perde 11 minutos para o primeiro nesse interregno. São os dedos enrijecidos que não dominam os travões na fase íngreme das descidas. Há quem decida urinar sobre as mãos para aquecê-las. Quedas terríveis. Às 22h40, em Luchon, contabilizavam-se 31 ciclistas dos 76 que tinham saído de Bayonne.

No ponto de controlo do Café Central preparavam-se grupos de busca para encontrar os desaparecidos. Alguns surgiram à boleia de quem os apanhou, tombados. Fernand Besnier, o último, conclui a etapa seis horas depois de Buysse, o futuro vencedor da volta e primeiro a chegar a Luchon ao fim de 17h 12m e 4s. Charles Ravaud, habituado às maiores epopeias do Tour, sublinha nas páginas do seu jornal: «Non, vraiment, cette étape était trop dure!».