Devaneio e realidade

A Tapada da Ajuda serve para andar de bicicleta e fazer festas ou ‘eventos’? Os alunos têm de ‘saber fazer’ ou têm de ‘decorar umas coisas’ e ‘pesquisar uns artigos na net’?

por António Manuel de Paula Saraiva
Arquiteto paisagista

A casa-mãe onde estudei foi o Instituto Superior de Agronomia – para quem não saiba fica na Tapada da Ajuda (1). Após fazer o curso de Agronomia fiz o de arquitetura paisagista, e continuei a visitar a Tapada da Ajuda e a falar com os seus professores.

Entretanto, quando iniciei os estudos deparei-me com algumas dificuldades. Eu era um filho de Lisboa, não tinha tido contacto com as realidades da lavoura e da pecuária. Assim: como distinguir os grãos de trigo dos de centeio? Como é que se espalhava o estrume nos campos? Quantos vitelos uma vaca paria num ano? E durante quanto tempo os amamentava? etc. etc. Note-se que naquele tempo não havia o ‘Dr. Google’ para responder a estas questões.

Por sorte, como gostava muito de andar a pé, passei um dia pela rua do Arsenal (para quem não saiba, entre o Cais do Sodré e o Terreiro do Paço), e ali vi expostos sacos com trigo, cevada, centeio… Pintos recém-nascidos, debaixo de uma lâmpada de infravermelhos… Fiquei contente. Passava lá muitas vezes, e finalmente aprendi a distinguir os grãos de trigo dos de centeio! E depois das aulas percorria os pomares da Tapada da Ajuda para conhecer as doenças das árvores. Já dispunha, entretanto, de alguns bons livros com gravuras coloridas que a tal me ajudavam.

Mas custava-me ver o pouco caso que se fazia da parte propriamente agrícola da Tapada. Os pomares estavam de tal modo infetados por pragas e doenças que mais pareciam ‘catálogos de doenças’. As vinhas pouca produção davam. Uma antiga vacaria fora desativada – e assim um aluno poder-se-ia formar em Agronomia sem nunca ter visto uma vaca! Ovelhas e porcos não havia (é verdade que se faziam, embora raramente, ‘visitas de estudo’(2).

Na cadeira de Microbiologia faziam-se nas aulas análises ao vinho e ao azeite, mas se os resultados estavam ou não corretos não era verificado… E havia mesmo um ‘contínuo’ (funcionário) para ajudar os menos habilidosos. Lagares de azeite e adegas eram inexistentes (3). Estufas dignas desse nome também.

Esta atitude de desprezo pelo concreto levava a situações caricatas: havia na Tapada, junto ao portão da Ajuda, um viveiro florestal… que tinha um único trabalhador. Como disse, eu gostava de passear pela Tapada, e falava com ele. Um dia disse-me: «Sabe, sr. engenheiro, eu tenho 7 chefes!». E enunciou-os: o sr. engenheiro A, o sr. engenheiro B, o sr. Engenheiro C, etc. Continua o homem: «Um dia veio-me aqui o sr. engenheiro A e disse-me: ‘Cotrim, queria que me fizesse um ensaio’ e eu respondi-lhe: ‘Com certeza, sr. Engenheiro, mas para isso tenho de parar o ensaio que o sr. engenheiro B me mandou fazer’. Mas o engenheiro A, que não queria problemas com os colegas, respondeu: ‘Deixe lá, deixe lá, eu depois falo com ele…’, e foi-se embora». De facto, o sr. Cotrim não tinha sete chefes, ele é que mandava em sete engenheiros!

Muitas vezes, eu pensava: a Tapada deveria estar arranjada de tal forma que um agricultor, ao visitá-la, ficasse rendido pelos resultados obtidos – a nível da produtividade, inovação, e até, se possível, económico (nessa época o Ambiente não constava ainda dos fatores a ter em conta).

Tudo isto, para mim, era (é) produto de uma cultura que privilegia a teoria, o verbo, e despreza ou pouco valoriza, quem faz. Vejamos como os agricultores são considerados na escala social.

Há dias visitei de novo a Tapada para um almoço de convívio de antigos colegas. A situação tinha piorado: o estado de abandono era patente, a maior e melhor parcela de terreno da Tapada, a ‘terra grande’, estava inculta, e o tanque de rega que a servia (onde eu tinha ido muitas vezes tomar banho ao cair da noite) destruído.

Assim não pude deixar de comentar com uma colega: «A Tapada está muito abandonada!», ao que ela respondeu: «Achas? Mas olha que tem havido aqui muitos eventos! E fizeram uma pista de ciclismo!». De facto, no que foi o Pavilhão de Exposições (que quando frequentei o Instituto para nada servia e estava semi-arruinado, sendo depois recuperado em 1984) vi celebrar-se uma festa de casamento.

Mas vejamos: a Tapada da Ajuda serve para andar de bicicleta e fazer festas ou ‘eventos’? Os alunos têm de ‘saber fazer’ ou têm de ‘decorar umas coisas’ e ‘pesquisar uns artigos na net’?

É verdade que o Instituto de Agronomia, na atualidade, se ‘diversificou’: a par da Engenharia Agronómica ‘pura e dura’ são ministrados os cursos de Arquitetura Paisagista, Biologia, Engenharia do Ambiente, Engenharia Alimentar, Engenharia Florestal e dos Recursos Naturais, Engenharia Zootécnica. Mas ainda assim, talvez com a exceção do curso mais teórico (Biologia), um plano de estudos entrançado com a prática daria mais segurança aos futuros engenheiros, e melhor cimentaria os ensinamentos teóricos.

Deste modo, e concretizando para o caso dos futuros engenheiros agrónomos, proporia que os alunos fossem divididos por grupos, tendo cada grupo – a par das aulas teóricas – de se encarregar pelo cultivo de determinada parcela (vinha, olival, pomar, cultivo do milho e do trigo, hortícolas, etc.), grupo de animais (vacas, ovelhas, galinhas, etc.), estação meteorológica; para o ramo da engenharia alimentar teriam de fazer vinho, azeite, cidra, sumos, farinha, análises de alimentos, etc.

No final do ano – ou do semestre, conforme os casos (4) – os alunos seriam avaliados pelos resultados práticos obtidos (produções e sua qualidade), e pelas explicações que dariam das opções que foram tomando. Cremos que assim, além desse ‘cimentar’ da teoria, os processos de deliberação que levassem à tomada das várias decisões desenvolveriam nos alunos a argumentação/aceitação – e assim a facilidade de integração futura em grupos, capacidade indispensável porque, como se sabe, um homem sozinho não vai a parte nenhuma.

Um ensino associando teoria e prática – cujo exemplo mais conhecido é o dos cursos de Medicina (5), com os bons resultados que se reconhecem – é indispensável se queremos revitalizar a nossa economia, e muito particularmente a nossa agricultura, hoje já quase só praticada por reformados ou imigrantes.

E finalizemos com um alerta: Devaneio é pensar que, com este tipo de estudos, estamos contribuindo para a modernização da nossa agricultura. Realidade é que Portugal importa mais de 70% dos alimentos que consome (6), estando assim numa situação muito pouco segura, num mundo em que, infelizmente, a turbulência veio para ficar.

1. Para quem não saiba, a Tapada da Ajuda fica em Lisboa, numa suave encosta virada para o Tejo entre Alcântara e a Ajuda. A sua área é de cerca de 100 hectares. O espaço era uma antiga tapada real, no qual foram construídos em 1861 o Observatório da Ajuda e em 1884 o Pavilhão de Exposições, que foi em Portugal a primeira obra significativa da arquitetura de ferro e vidro. Com o advento da República, a Tapada foi entregue ao Instituto Superior de Agronomia, para ensino da agricultura e recreio do público, tendo em 1917 sido inaugurado o edifício do Instituto Superior de Agronomia, ainda hoje existente. Na atualidade, com a diversificação dos cursos e o aumento de alunos, foram construídos, ao sabor das verbas disponíveis, outros edifícios, embora não obedecendo a um plano geral.

2. Nas visitas de estudo os alunos não têm de ‘fazer’, mas apenas de ‘ver’. Os mais interessados chegam-se à frente e fazem algumas perguntas, os demais ficam atrás a contar anedotas ou a namorar

3. Atualmente existe uma adega onde se faz vinho. Como se sabe, a Enologia teve grande expansão – não apenas no Instituto Superior de Agronomia – e Portugal exporta vinhos para muitos países

4. Os períodos de exame teriam, logicamente, de ser adaptados aos ciclos das culturas

5. Um ensino aliando teoria à prática é também ministrado nas Escola Superiores de Desporto, Escolas de Multimédia, e outras.

 

6. Portugal importa 73% dos alimentos, conclui um estudo da Universidade de Aveiro. Fonte: Lusa 2 de novembro de 2020.