Ana Luísa Amaral (1956-2022). O som que a vida faz ao partir-se

Morreu, aos 66 anos, vítima de cancro, a poeta, ensaísta, tradutora, investigadora e professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Nela, o exercício literário e a intervenção cívica não eram esferas inconciliáveis. 

Entre as vozes poéticas que marcaram o final do século XX e o início deste século, a de Ana Luísa Amaral – clara, desenvolta, lúdica, convivial, densa – elevou-se a grande altura. Autora de uma obra que adquiriu grande consistência como uma das mais representativas da escrita poética contemporânea, era uma figura celebrada, distinguida com prémios vindos dos mais diversos quadrantes. 

Se a irradiação internacional não demorou, a consagração dos últimos tempos, a multiplicarem as homenagens de sabor póstumo, tinha há muito começado. Distinguida no ano passado com o maior galardão de poesia do espaço ibero-americano, o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, atribuído pelo Património Nacional de Espanha e a Universidade de Salamanca, Ana Luísa Amaral tem livros traduzidos nas mais diversas línguas. Ainda mal tinha sido anunciado que seria ela a autora homenageada da edição de 2022 da Feira do Livro do Porto, cidade que adoptou, e eis que a sua morte, aos 66 anos, vem surpreender a sua larga roda de leitores. 

Especializada em Poéticas Comparadas, Estudos Feministas, Estudos Queer, foi talhada para ser metida na pele da menina bem comportadinha e educada para cumprir expectativas (“Letras, jamais!”), mas os desígnios familiares não se cumpriram: Ana Luísa Amaral não coube no molde da engenheira química. Deste desajuste nos falaria um registo que consta da caderneta do colégio de freiras que frequentou: “A menina é inteligente, mas muito indisciplinada”.

Ficou o registo da ambiência do colégio, da freira “a vigiar distraída em salmos / eu a sonhar de livro aberto […], das “tardes claras em que era bom/ ser boa, não era o santinho nem o rebuçado/ era a palavra doce a afagar-me por dentro/ as batas todas brancas salpicadas de gouache/ colorido e o cinto azul que eu trazia sempre largo/ assim a cair de lado à espadachim”. 

De muita coisa se fazem os seus poemas – de ervilhas com ovos, arroz de tomate e até batatas por descascar, íntegras, mas também dos pequenos-grandes ofícios. Não tinha a receita para um poema. Confessou que estava apta a ensinar tercetos, quadras e decassílabos, coisa fácil, mas não como se faz ou como surge a atração das palavras, esse mister a um tempo “maravilhoso e angustiante”.

A menina fez-se mulher, professora Associada no Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto, onde integrava a direcção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, que conduziu ao longo de mais de uma década e no âmbito do qual dirigia o grupo internacional de pesquisa Intersexualidades, tradutora de Emily Dickinson, de William Shakespeare, entre outros, fez-se senhora «Dona de nada», reclamando, logo no livro de estreia, em aberto diálogo com Maria Teresa Horta, uma identidade poética própria: “Nem tágides nem musas:/ só uma força que me vem de dentro/, de ponto de loucura, de poço/ que me assusta/ seduzindo […] Nem rio nem lira / nem feminino grupo a transbordar: / só o que herdei em força não herdada / em fonte onde o luar / não está” (Coisas de Partir). 

Muito embora os seus poemas exibam marcas inconfundíveis de um sujeito feminino, a autora de Mundo não se reconhecia na imagem esteriotipada da “feminista militante”, preferindo afirmar a sua individualidade criadora e sempre fiel a uma ética da responsabilidade que não se compadecia com atitudes de sobrevoo da coisa pública. 

A velha indisciplina deu lugar à figura da subversão, sinalizada no próprio título da antologia que reúne os livros publicados entre 1990 e 2010: Inversos (2010). Alinhem-se ainda os livros de mais recente publicação: Vozes (2011), Escuro (2014), E Todavia (2015), What’s in a name (2017), cuja edição espanhola a associação das Livrarias de Madrid distinguiu com o prémio de Livro do Ano, no campo da poesia. 

A obra poética que, livro a livro, Ana Luísa Amaral construiu – este ano reunida no extenso volume O Olhar Diagonal das Coisas, incluindo os mais recentes Sopros – é o eco afetivo de um coro de vozes constitutivo da nossa tradição literária, da qual possuía um sólido conhecimento que lhe permitia virá-la do avesso. Revelada nos anos 90 com Minha Senhora de Quê, logo prosseguiu, com impressionante cadência editorial, com Coisas de Partir (1993), Epopeias (1994), E Muitos os Caminhos (1995), Às Vezes o Paraíso (1998).

Os livros que a seguir vieram, Imagens (2000), Imagias (2002), títulos reveladores do peso que as imagens têm na sua obra, mas também em A Arte de Ser Tigre (2003), apresentavam uma poética já muito amadurecida, devedora da tradição literária anglo-americana, na qual Ana Luísa Amaral se movia com familiar à-vontade e arguta inteligência teórica.

Licenciada em Germânicas e doutorada em Literatura Norte-Americana pela FLUP, Ana Luísa Amaral era investigadora nos campos da Literatura e Cultura Inglesa e Americana. Foi estudiosa apaixonada da obra de Emily Dickinson e distinguiu-se como referência internacional nos Estudos Feministas. 

Muito atenta ao efémero eterno que é o poema, como privilegiadamente demonstra o livro Entre Dois Rios e Outras Noites (2008), pelo qual recebeu o Grande Prémio de Poesia da APE, a autora construiu um universo poético muito particular que oscila entre a atenção dada à experiência dos pequenos formatos quotidianos, percorridos com ironia e sentido lúdico, e a própria experiência da escrita, fascinada perante as possibilidades ou limites da linguagem poética. Sobretudo nos primeiros livros, a sua escrita alimenta-se de uma interioridade doméstica de repetidos gestos que todos partilhamos e de um mundo que facilmente reconhecemos. A verdade é que esse mundo, visto sempre em deslumbramento, guarda larga distância do anódino e do banal. 

Ana Luísa Amaral conta também com relevante produção no domínio da literatura infantil: A Relíquia, adaptado aos mais novos, 2008; Gaspar, o Dedo Diferente, 2011; A Tempestade, 2011. 

Ao fim de muitos livros de poesia, publicou, em 2013, Ara, um romance de temática viajante e enigmas que se fazem presentes logo a partir do título; um romance que não é um romance, como que correspondendo ao desenvolvimento mais alargado de um escrito que não coubesse nos limites estreitos de um poema.