Yulia Tymoshenko: “Putin quer criar um novo tipo de império para o século XXI”

Tymoshenko nunca imaginou que o Kremlin invadisse. Apela a uma contra-ofensiva no outono, que possa reconquistar Donbass, até a Crimeia. E quem sabe derrubar Putin.

Ao longo de décadas de disputa pela alma da Ucrânia, dividida entre o Ocidente e a vizinha Rússia, Yulia Tymoshenko tornou-se sinónimo da viragem do seu país para a NATO e a Europa. Esta antiga prisioneira política encabeçou a Revolução Laranja, em 2004, após o seu então aliado Viktor Yushchenko ser envenenado, conseguindo dar um golpe na governação de Viktor Yanukovych e nos planos de Vladimir Putin para aumentar a influência nesta antiga república soviética. Em tempos apelidada de ‘princesa Leia ucraniana’, pelo seu icónico penteado, Tymoshenko tornar-se-ia primeira-ministra, tendo dois mandatos marcados por profunda instabilidade política. À frente do partido União Pan-Ucraniana ‘Pátria’, Tymoskenko seria um dos principais adversários eleitorais de Volodomyr Zelensky. Contudo, hoje, com uma invasão em curso, «na prática, já não existe política na Ucrânia», diz, garantindo total apoio ao seu antigo rival, «perante esta ameaça existencial de perdermos a nossa independência». E assegura que não há fim para a guerra que não uma vitória da Ucrânia no campo de batalha, recusando ceder qualquer território. Vê o conflito como um confronto entre o Ocidente e uma «coligação-sombra» liderada por Putin, e visa que «os vencedores desta guerra serão os criadores de uma nova ordem mundial».

 

Tem a distinção de ter sido uma das maiores pedras no sapato de Vladimir Putin durante anos. Enquanto esteve no Governo, alguma vez temeu que algo assim pudesse acontecer? Alguma vez pensou que Putin pudesse de facto invadir a Ucrânia?

Claro que estava consciente do carácter agressivo de Putin e das suas enormes ambições. Bem como do seu sentido de missão quanto à renovação do império russo. Mas nunca, nunca, pensei que Putin faria uma tal agressão, numa guerra a tão grande escala contra a Ucrânia, mesmo na altura em que ele interveio e cometeu um ato de agressão contra a Geórgia, em 2008. Mas o mesmo pensaram muitos líderes europeus e mundiais, que não esperavam isto de Putin, de todo. Mas temos de aprender com isso. E agora noto que alguns líderes ainda não acreditam que esta guerra, que está relativamente longe dos seus próprios países, possa um dia chegar às suas fronteiras. As lições que estamos dolorosamente a aprender deveriam ser tidas em conta. E a conclusão é que, a não ser que esta guerra seja travada na Ucrânia, chegará à fronteira de países muito distantes. Ainda recentemente escrevi um artigo sobre isso, sobre o que esperávamos em 2008 ou em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e o Donbass. Essa teria sido a altura certa para o mundo começar a reformar sistemas de segurança coletiva e organizações internacionais, que não teriam permitido que nenhum líder autoritário cometesse uma agressão como fez Putin. Desperdiçámos tempo, o Ocidente desperdiçou tempo. Como tal, é uma responsabilidade dos atuais líderes não repetirem outra vez o mesmo erro.

De momento, a maioria dos líderes ocidentais soam unidos em torno de uma mensagem mais ou menos semelhante no que toca à Ucrânia. Mas há muitas conversações nos bastidores que indicam que líderes ocidentais estão a ficar cansados da guerra, querem que termine o mais rápido possível, seja com que resultado for. Estou a pensar na Alemanha e na França, em particular. O que pensa da posição destes países?

O ponto de partida para todos os líderes ocidentais, incluindo dos países que mencionou, tem de ser compreender a verdadeira motivação por trás da agressão de Putin. Os seus objetivos são muito mais amplos do que parece à primeira vista. E ele não está sozinho nisso. Por trás de Putin, há uma coligação-sombra internacional, por vezes formal, outras vezes informal, que partilha das suas motivações para esta guerra. Putin e a sua coligação-sombra têm objetivos ambiciosos. Primeiro, minar a atual ordem internacional liberal e democrática, que é baseada em valores europeus amplamente partilhados. Segundo, abalar a unidade do Ocidente e eliminar a sua liderança no mundo. Terceiro, redesenhar as fronteiras existentes às custas dos países mais frágeis à volta da Rússia e não só. E usar isto como pretexto da criação de um novo tipo de impérios para o século XXI. A força de Putin e da sua coligação-sombra é a fraqueza do Ocidente. A sua força não é um exército forte, vimos que não é esse o caso. Nem a economia, sabemos como esta é frágil, ou o soft power, que lhe falta. A sua força é uma resposta fraca e insuficiente do Ocidente. Recentemente, quando preparava o meu discurso para uma mesa redonda, descobri um artigo do Economist publicado a 14 de outubro de 1854, há 168 anos, durante a Guerra da Crimeia. O título era: ‘Fontes permanentes da fraqueza russa’. Se o lermos, é como se fosse sobre a Rússia atual. A conclusão era exatamente que a fonte da força da Rússia era a fraqueza do Ocidente. Tomei a liberdade de apresentar este artigo, com a sugestão de que fosse republicado outra vez, para mostrar que é fundamental o Ocidente reforçar a sua liderança e estrutura de segurança. Porque se isso não acontecer o Ocidente pode ser derrotado. Nos objetivos de Putin, a Ucrânia é só a primeira fase. A minha mensagem para os líderes de França, Alemanha, Itália e outros países é que a história ensina-nos que a atual guerra não é só contra a Ucrânia. É uma guerra defensiva do mundo livre contra um regime autocrático ambicioso que está a formar a sua própria coligação. Isto tem de ser parado agora no território da Ucrânia. Parafraseando uma frase de Roosevelt, durante a II Guerra Mundial, temos de parar o fogo onde deflagrou. Importa lembrar que os vencedores dessa guerra tiveram a liberdade de escrever as regras. Esse é o prémio da luta que conduzimos hoje. Os vencedores desta guerra serão os criadores de uma nova ordem mundial.

Fala de vencer esta guerra. Mas há imensa discussão quanto ao que significa vencer. Para si, vencer a guerra significa que as fronteiras voltam ao que eram antes da invasão de fevereiro? Significa retomar o Donbass inteiro? Ou até recuperar a Crimeia? Porque isso é algo que não consigo imaginar a acontecer sem uma enorme escalada por parte da Rússia. O que significa vitória?

Para mim, há três partes na definição de vitória. A primeira, criar as condições necessárias a nível do fornecimento de armas, na acumulação de massa crítica, que permita lançar uma enorme contra-ofensiva já no outono deste ano. Segundo, conseguir o retorno de todos os territórios ocupados pelos russos até agora. Terceiro, esmagar o regime de Putin na Rússia, como consequência da sua derrota estrondosa no campo de batalha na Ucrânia. Quero que compreenda a minha lógica. Esta contra-ofensiva de que tanto se fala, dentro e fora da Ucrânia, caso comece, não será uma contra-ofensiva fragmentada. Ninguém conseguiria calibrar e calcular onde parar, se seria na linha que existia antes de 24 de fevereiro, nos territórios parcialmente ocupados no sul e leste da Ucrânia ou noutro sítio qualquer. Como tal, a minha definição de sucesso seria a devolução, no sentido estratégico, de todos os territórios ocupados e a restauração da integridade territorial da Ucrânia, nas suas fronteiras reconhecidas internacionalmente. Seria prematuro julgar qual será o resultado. O mais importante agora é avaliar se esta contra-ofensiva maciça ocorrerá, se estarão reunidas as condições necessárias ou não. Se não acontecer, seria uma receita para uma guerra de atrito, a longo prazo, um conflito prolongado que poderia fragilizar a unidade do Ocidente e dar poder a Putin. Porque Putin está a jogar com o tempo. Mas, se esta contra-ofensiva ocorrer, então não acho que fosse possível parar as forças armadas ucranianas antes de retomarem os territórios ocupados. E muitos pensam que mesmo os atuais desenvolvimentos no sul da Ucrânia podem ter um impacto decisivo no resultado desta guerra. Porque se o exército da Rússia for esmagado no sul haverá desmoralização, fragmentação e colapso do regime do Kremlin. Seria uma derrota com enormes repercussões domésticas. Entenda que, para nós, não é imaginável uma solução às três pancadas.

A questão é que, tal como os russos descobriram na Ucrânia, conquistar território é muito mais difícil do que defendê-lo. Mesmo no cenário mais otimista, uma grande ofensiva para retomar o Donbass inteiro ou a Crimeia teria um custo humano brutal para a Ucrânia. Compreendendo a ânsia de defender a soberania nacional quanto a fronteiras, pergunto-lhe: que custo humano estaria disposta a aceitar para obter esta vitória?

Quero dar-lhe alguma medida da escala do que falamos. Neste momento, a Rússia ocupou uma área que é quase uma vez e meia todo o território de Portugal. Veja os números, o território de Portugal são aproximadamente 92 mil quilómetros quadrados. O território da Ucrânia ocupado pelos russos, a partir de 2014, são mais de 125 mil quilómetros quadrados. Nem um único ucraniano se conseguirá reconciliar com uma perda tão pesada de território. Estamos preparados para pagar um preço para ter de volta deste território. Aquilo que me impressionou logo nos primeiros dias desta guerra, mal eclodiu, quando começaram a cair bombas e mísseis, foi ver longas filas de jovens e menos jovens à porta de um centro de recrutamento militar, às 4h da manhã. Queriam defender o nosso país. Outro coisa que me marca é como, durante as primeiras semanas e meses da guerra, tantos ucranianos foram obrigados a deixar as suas casas, que foram destruídas ou temiam que fossem bombardeadas. O total de deslocados foi de 14,5 milhões, é mais do que a população inteira de Portugal. Mas um mês e meio depois, muitos começaram a regressar, apesar de os ataques com mísseis continuarem. Os ucranianos estão preparados para arriscar as suas vidas para libertar a nossa terra, o nosso país, para salvar a nossa liberdade. Perceba que para nós esta é uma guerra de vida ou de morte. O que está em causa é se a nação ucraniana continuará a existir ou não. Eu compreendo a lógica de alguns líderes no estrangeiro, que possam querer falar com o Presidente da Ucrânia e de alguma forma convencê-lo que é altura de fazer um suposto acordo de paz. De trocar território por paz, basicamente, esta é a fórmula. Mas a Ucrânia é um país democrático. O Presidente não tem direito soberano para tomar esta decisão ignorando a vontade do povo. E o povo ucraniano nunca apoiará nenhum acordo de paz que abdique de território para o inimigo.

Então não há via negocial para a paz por agora?

Há a visão errónea na comunidade internacional de que há duas maneiras de terminar esta guerra, com uma vitória no campo de batalha ou uma solução diplomática já hoje. Não creio que haja duas vias. Um acordo de paz com o país agressor, hoje, não é possível. O que é que a Rússia exige? Que abdiquemos de território já ocupado, em Donetsk, Lugansk e Crimeia e que reconheçamos que pertencem à Rússia. Depois, um desarmamento unilateral e minimização das forças armadas ucranianas. E ainda que a Ucrânia recuse entrar em qualquer organização de defesa coletiva, em particular a NATO. Além de quererem que abdiquemos da nossa identidade nacional e cultural, que recusemos as nossas raízes históricas. Nem um único ucraniano, desde as crianças aos pensionistas, de médicos a militares, nenhum alguma vez aceitaria tais condições. Isso não seria um caminho para a paz, mas sim para uma nova guerra dentro de um ano ou dois, como resultado de uma Ucrânia enfraquecida, sozinha. A parte mais cínica das condições deles provavelmente é que a Ucrânia aceite que a Rússia seja um dos garantes da futura segurança ucraniana. Ninguém acreditaria nisso. Seria um grande erro dos líderes ocidentais se confiassem em condições tão irrealistas, que não serão sustentáveis. Seria uma paz falsa, ilusória, que seria um prelúdio da próxima vaga do conflito. O único caminho realista para a paz é a vitória no campo de batalha. Não devemos ter medo daquilo que mencionou, que após a Ucrânia tomar uma parte significativa do território ocupado a Rússia escale e que isso leve a uma guerra ainda maior. Lembre-se que aqui estamos todos convencidos de que, mal as tropas russas no sul da Ucrânia sejam esmagadas, imediatamente levará ao início do colapso do regime de Putin na Rússia. A lutas internas das elites russas escalarão enormemente, porque deixarão de acreditar que a Rússia está no lado vencedor. O mesmo com a população russa, a desmoralização será tal que a vitória do mundo livre, junto com a Ucrânia, será clara.

Pensando no que aconteceria numa eventual queda do regime de Putin, um personagem que poderia ser crucial seria Alexei Navalny. E sempre que lia algo sobre Navalny, de certa forma lembrava-me uma jovem Tymoshenko, a partir as janelas da prisão nos seus tempos na oposição a Viktor Yanukovych. Noto o mesmo tipo de táticas, utilizando ações com grande impacto mediático global. Tendo essa experiência, ainda por cima bem sucedida, que conselho daria a Navalny para enfrentar Putin?

O falhanço do regime de Putin daria uma oportunidade para o povo russo finalmente ter esperança que procedimentos democráticos possam aparecer na Rússia. Isso significaria alguma hipótese para a oposição política. Que os russos tenham uma hipótese de comunicar com essa oposição, para que compreendessem melhor o que estes líderes querem. Para o mundo inteiro, seria importante que após a queda do regime russo pelo menos houvesse alguma democracia. E quero dar um conselho aos opositores russos, sejam quem forem, mas incluindo Navalny. Saibam da importância da integridade, de não haver dois pesos e duas medidas. Pediria alguma precaução aqui, porque estou consciente da posição de Navalny quanto à anexação russa da Crimeia. A posição dele é completamente inaceitável para nós. E espero que líderes como Navalny, ou outros, que emerjam graças a processos democráticos após o falhanço do regime de Putin, quando chegarem ao poder a primeira coisa que espero que façam seja deixarem a Crimeia e o Donbass, que os reconheçam como parte integral da Ucrânia. E que nunca tenham ambição de roubar o território de outros países.

Pode clarificar exatamente o que é inaceitável na posição de Navalny para si?

Ele basicamente concordou que a Crimeia é agora território russo. E que não é uma moeda de troca. À sua maneira, quer legitimar isso. E digo-lhe uma diferença entre uma jovem Tymoshenko e Navalny. Uma jovem Tymoshenko, como agora, nunca se atreveria a querer agarrar território de outros países [risos]. Essa é a grande diferença.

Admito que isso me tira alguma esperança, porque mesmo uma eventual governação de alguém de alguém como Navalny seria uma rutura radical, quase inimaginável em Moscovo. Não há nenhuma esperança para a paz no futuro próximo?

Não creio que caiba a novos líderes russos, quem quer que venham a ser após um colapso do regime de Putin, decidir que território manter e que território devolver. Esse é o papel de um sistema de segurança internacional reformado, com um compromisso renovado com as fronteiras. Será isso a decidir o futuro desta terra. O alargamento da União Europeia dá-nos a melhor esperança de que, quem quer que venha a liderar a Rússia, terá de respeitar as normas internacionais. Sou uma otimista. E acredito que após as dificuldades enormes que enfrentamos, o mundo livre emergirá mais forte do que antes desta guerra. Porque temos de conseguir defender as liberdades.

Mencionou a Guerra da Crimeia e o império russo. Outro legado desse império é a influência cultural e social da Rússia – não necessariamente do Kremlin – na Ucrânia, através da população russófona. Aliás, a própria Yulia cresceu a falar russo e só mais tarde começou a falar ucraniano. Haverá lugar para russófonos na Ucrânia após a guerra? Terão direitos linguísticos?

Respondendo à sua pergunta, vou-lhe contar uma história pessoal. Visitei Kharkiv, nas primeiras semanas da guerra, após um dos mais pesados ataques com mísseis, quando a praça principal foi atingida. Kharkiv é a segunda maior cidade da Ucrânia e principalmente russófona. Quando cheguei com uma missão humanitária, para levar medicamentos ao hospital, tocou uma sirene de alerta de ataque aéreo, muito alto. Tive de ir para uma estação de metro que era usada como abrigo. Quando lá cheguei, havia muitas, muitas famílias, sobretudo mulheres e crianças. Quando me viram e reconheceram, começaram a falar comigo num ucraniano muito pobre. Mas esse foi o som mais doce do ucraniano que alguma vez ouvi. Foi um sinal de que, num momento em que mísseis russos os estavam a atingir, pessoas russófonas, que a Rússia prometeu defender, expressaram o seu protesto contra isso tentando falar comigo em ucraniano. Vi isso no oblast de Donetsk, em Odessa, Nykolaiv, Zaporínjia, na minha cidade natal, Dnipropetrovsk. Os ucranianos russófonos tornaram-se mais ucranianos até do que os do oeste da Ucrânia como resultado desta guerra. Esta guerra uniu-nos, mas não há nenhuma ameaça à língua russa, nunca os russófonos foram perseguidos. O resultado não intencional desta guerra, algo que Putin não esperava, foi tornar os ucranianos mais unidos do que alguma vez foram. Não interessa que língua falam, russo ou ucraniano. Antes da guerra, onde a minha família vivia, em Dnipropetrovsk, falava-se russo nas ruas, ninguém o proibia, era parte da vida normal. Agora, voluntariamente, em protesto, mesmo no leste, as pessoas tentam falar ucraniano. Mas o russo é uma língua amplamente espalhada, mesmo na linha da frente soldados ucranianos continuam a comunicar em russo. E estão a sacrificar as suas vidas pela Ucrânia. Acredito que o povo ucraniano ficou mais forte, com uma compreensão mais profunda das suas raízes históricas. E isso providencia um antídoto para qualquer radicalização.

No início da guerra estive nos campos de refugiados na Polónia e cruzei-me com muita gente russófona do leste da Ucrânia. Aliás, maioritariamente, porque eram as regiões mais afetadas. Notei que havia um ódio ao Kremlin, que os estava a bombardear e a obrigar a fugir das suas casas, mas ao mesmo tempo havia uma grande suspeição quanto ao Estado ucraniano. E muitas menções à desilusão após a Revolução Laranja ou a queda de Yanukovych. E mencionaram como motivo as disputas continuadas entre políticos, o controlo dos oligarcas, a corrupção. Mesmo após uma eventual derrota da Rússia, acha que conseguiria enfrentar todos estes problemas?

Tem razão, após a Revolução Laranja e a Revolução da Dignidade tivemos uma grande oportunidade para transformar a Ucrânia, de a tornar melhor, e isso incluía fazê-la parte da União Europeia e da NATO. Enquanto primeira-ministra, no meu segundo mandato, assinei uma carta de candidatura para um plano de ação conjunto com a NATO. Mas, como sabe, houve países que votaram contra, como a França e a Alemanha. E a Ucrânia foi deixada numa área cinzenta fora da NATO. Esse foi um erro estratégico, trágico. Creio que se nessa altura a UE tivesse tido mais vontade de seguir nessa direção, hoje não teríamos esta guerra no nosso território, com dezenas de milhares de mortos. Seria uma Europa diferente, um mundo diferente. Desperdiçou-se tempo. Por isso é ainda mais importante não perder a nova oportunidade que virá depois do inverno. Daí que a minha equipa proponha mudanças institucionais, políticas domésticas, que permitam enfrentar decisivamente a corrupção, a oligarquia. Não enfrentar as consequências destes fenómenos, mas as causas. Tornar as instituições fortes, criar uma verdadeira separação dos poderes, um sistema fiscal justo. Há muitas coisas que têm de ser feitas. E, após o inverno, temos de nos mover decisivamente na direção da NATO. A Europa não tem direito de preservar as zonas cinzentas fora dos sistemas de defesa coletiva. Creio que a defesa coletiva é a única estratégia forte que dissuade qualquer guerra. Deixar indefeso um país fraco e frágil é uma tentação para ditadores deste novo mundo. Não é a força que provoca, é a fraqueza. Temos de aprender as lições destas agressões contra a Geórgia e a Ucrânia. Temos de dar uma nova esperança a estas pessoas com que se cruzou nos campos de refugiados. A minha equipa está preparada, com um plano para a Ucrânia finalmente dizer adeus a estes fenómenos pós-soviéticos como a oligarquia.

A propósito disso, nas últimas eleições foi dos principais adversários eleitorais de Volodymyr Zelensky. Ele recentemente teve um escândalo que achei particularmente revelador, com o afastamento do chefe das secretas, o seu velho amigo Ivan Bakanov, acusado de não se conseguir livrar dos infiltrados russos. Vê este caso como emblemático da tendência de Zelensky de pôr em altos cargos amigos devido a lealdade pessoal, não à sua qualificação? E acha que é um sintoma de quão difícil lidar com redes de espiões russos nos serviços secretos? Como é que lidou com isso enquanto primeira-ministra?

Nos últimos trinta anos, o Kremlin conseguiu infiltrar e infetar parte do establishment ucraniano, incluindo ministérios e agências tão importantes quanto os serviços secretos. Sob Yanukovych, chegaram a estar cidadãos russos à frente do ministério da Defesa. Esta quinta coluna tem de ser eliminada. Mas, ao mesmo tempo, também precisamos de pôr fim à prática de colocar em cargos importantes familiares, amigos de infância ou membros do clã. Não temos outra opção que não recusar esta prática no futuro. Mas também quero deixar claro, desde o primeiro dia da guerra, na Ucrânia deixou de haver oposição e Governo. Essa divisão já não existe. Na prática, já não existe política na Ucrânia. No primeiro dia reuni com Zelensky e disse-lhe que o ia apoiar, ao exército, em tudo o que seja necessário ao Governo, perante esta ameaça existencial de perdermos a nossa independência. É essa a nossa responsabilidade, sermos uma equipa. Claro que para a oposição é muito natural criticar políticas do Governo, mas não durante a guerra. Isso fica para depois da guerra, esse tempo chegará.