A apropriação cultural nas Festas D’ Agonia de Viana do Castelo

Todos se apropriam de tudo: os visitantes da cultura vianense; os vianenses das culturas dos visitantes. Uma negra vestida de lavradeira minhota, uma branca com tranças africanas, um grupo de indianos a tentar dançar o Vira e um japonês a arriscar uma fartura mostram que nas Festas da Senhora D’ Agonia se celebra também o…

Por João Cerqueira

Nascidas em 1772, as Festas da Nossa Senhora D’ Agonia de Viana do Castelo são as mais importantes de Portugal e tornaram-se conhecidas no mundo inteiro. De 17 a 21 de agosto, mais de meio milhão de pessoas passarão pela cidade. Uma semana antes, já se encontravam nas ruas cidadãos de todas as nacionalidades: australianos, canadianos, americanos, indianos, argentinos, brasileiros (centenas deles), japoneses, coreanos, todo o tipo de europeus, uns senhores e senhoras que se sentem portugueses em casa e franceses na rua, e a exuberante tribo do Neopop. Numa confusão de línguas superior à da Torre de Babel, todos se entendem e confraternizam. É muito raro assistir a alguma cena menos agradável nas ruas, mesmo quando alguma fauna Neopop sai do recinto sem saber em que planeta está. As pessoas vieram para se divertir e sentem-se bem acolhidas pela cidade. Há concertos, exposições, conferências, provas de gastronomia e vinhos, desfiles de Cabeçudos e Gigantones, arruadas com concertinas, cantares ao desafio, bombos a estrondear com maior potência do que o techno da Neopop, fogo de artifício e, claro, o Cortejo das Mordomas e a Procissão Solene em Honra da Senhora da Agonia.

Este ano, até agora, a organização da Câmara Municipal e a atuação da PSP têm sido irrepreensíveis.

Estava tudo a correr tão bem, quando ao passear pelas tendas das Festas descubro o que poderia ser um ato de apropriação cultural. Ao lado do Campo da Agonia, onde chocam carrinhos dos encontrões e sobem ao céu montanhas-russas, há uma fila de tendas que se prolonga até ao centro de Viana. E não é que em algumas destas tendas há senhoras africanas e índias a fazerem tranças, tererés e outras magias nos cabelos lisos das brancas? Devem ser muito boas na sua arte pois formam-se longas filas de mulheres, crianças e até alguns homens que desejam ter penteados africanos ou índios. O caso é complexo. Porque se de um lado há apropriação cultural,  do outro, pelo papel de executante,  poderá haver – suponho – contrabando cultural.

Mas o pior estava para vir. 

Enquanto perambulava pelas Festas encantado pelos sons, pelas luzes, pelos odores das comidas e duas cervejas em jejum, uma conspiração daquele tipo decorria nas minhas costas. A minha própria filha aparece-me com um tereré nos cabelos – que, aliás, lhe fica muito bem – feito por um equatoriano que falava uma língua nativa incompreensível com a sua mulher. Confrontado com este grave problema, bebi mais uma cerveja. Depois, fui até uma barraca de setas e alvejei balões até alcançar o brinde de um unicórnio de peluche. Por fim, acendeu-se uma luz colorida: a felicidade das crianças está acima de qualquer tolice.

Resolvido este problema, pareceu-me encontrar outro: africanos a venderem máscaras e estatuetas a europeus. Seriam novas formas de apropriação e presumível contrabando cultural? O problema começa no início do século XX quando Picasso, Braque e outros modernistas se apropriaram da estética da arte africana – a estilização geométrica dos rostos – para criar o Cubismo e outros estilos que revolucionaram a arte. Ainda que os críticos de arte – e a maioria das pessoas – diga que se tratou de uma homenagem à cultura africana que a colocou ao mesmo nível que a cultura ocidental, o reconhecimento da igualdade entre o pensamento negro e o pensamento branco, há agora quem discorde. 

Arvorando-se representantes de milhões de seres humanos que  viveram noutros séculos e juízes dos ocidentais que vivem neste, discordam, apontam o dedo e proíbem. Ora, se não deixam que as mulheres brancas usem tranças negras, uma tradutora holandesa pudesse ter traduzido uma poetisa negra e outras proibições afins, permitirão que negros vendam a sua arte aos brancos?

Nas Festas da Senhora D’ Agonia de Viana do Castelo foi dada a resposta. Brancos, negros, orientais, cidadãos e cidadãs que se sentem portugueses em casa e franceses na rua e Neopop’s de outras galáxias não estão sequer interessados na possibilidade de se discutir semelhantes disparates. A alegria das Festas imunizou-os contra os vírus da intolerância e da estupidez.

Todos se apropriam de tudo: os visitantes da cultura vianense; os vianenses das culturas dos visitantes. Uma negra vestida de lavradeira minhota, uma branca com tranças africanas, um grupo de indianos a tentar dançar o Vira e um japonês a arriscar uma fartura mostram que nas Festas da Senhora D’ Agonia se celebra também o encontro da humanidade. E todos os seres humanos são bem-vindos – mesmo aqueles que só dizem asneiras, tolices e disparates.

Inventado na China, o fogo de artifício que irá colorir as noites de Viana unirá homens, mulheres e crianças de todo o mundo que de olhos nas luzes do céu sentirão na terra um vislumbre do paraíso.