Exposição em Lisboa afirma: “Descobrimento do Brasil foi matança”

‘Não foi descobrimento, foi matança’ é a frase que pode ler-se na Tarja que fecha a exposição Interferências, no MAAT. Para o historiador Oliveira e Costa, é um ‘disparate’. O autor defende-se. E o museu não ‘censura’.

Numa altura em que o coração de D. Pedro IV é um símbolo da união entre Portugal e o Brasil, com o presidente da Câmara Municipal do Porto a querer que o órgão, antes guardado a sete chaves na Igreja da Lapa, seja exposto, «pelo menos, de cinco em cinco anos» na Invicta, após a sua trasladação para o Brasil, o facto é que nem tudo é tão harmonioso nas relações entre os dois países irmãos.

No âmbito de Interferências, uma exposição coletiva dedicada a diferentes facetas da cultura urbana, uma obra do artista Rodrigo Ribeiro Saturnino, mais conhecido por ROD, tem suscitado uma polémica acesa e reações extremadas. Muitas de indignação.

‘Não foi descobrimento, foi matança’, lê-se na tarja cor de rosa que, desde março, pode ser vista no Museu da Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT). E depressa as redes sociais entraram em ebulição. No Twitter, o artista foi acusado de querer eliminar determinadas partes da História.

«Acho que as pessoas não entenderam. Infelizmente, numa das entrevistas que dei, no Brasil, a jornalista inventou coisas. Em Portugal, as pessoas compreendem o meu trabalho», sublinha, em conversa telefónica, ROD, que reside em Portugal há quinze anos.

«Há uma perspetiva de crítica a uma parte da História. É benéfica no sentido de contribuir para a mudança social: não para apagar a História, mas sim relê-la a partir de uma perspetiva contemporânea. A obra em questão é direta, tem uma frase simples e é provocativa no sentido de trazer um debate sobre os efeitos dos Descobrimentos: não tanto romantizá-los, mas vê-los compreendendo aquilo que realmente aconteceu», argumenta o artista, que também é investigador de pós-doutoramento na Universidade do Minho.

«Este meu trabalho, a que chamo de ativismo gráfico, serve para provocar a sociedade, para que haja mais debate. Não teve censura nenhuma, pelo contrário: a atitude do museu foi até, de certa forma, corajosa no sentido de aceitar uma obra com conteúdo provocativo. Mas não é a única, há mais peças com este objetivo, a minha é mais direta e se calhar capta a atenção das pessoas», reflete.

‘Uma afirmação política’
«O museu e a curadoria aceitaram. Houve foi um primeiro debate antes de terem aceitado a peça em termos da repercussão por saberem que a frase poderia ter consequências não tão positivas. Por isso, teve um período de análise e entender se teria condições ou não. Por isso, pensaram em colocar na entrada do MAAT, mas seria mais arriscado porque estaria ao ar livre», constata o artista. «Depois de um longo período de análise e debate, aceitaram, não houve censura nenhuma e me senti mais seguro nesse sentido. Quando uma instituição aceita, está fazendo, junto com o artista, uma afirmação política».

Com um longo percurso académico – licenciou-se em Comunicação Social (Jornalismo) pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (Brasil), é mestre em Comunicação e Cultura e tem um doutoramento em Sociologia – ROD sabe que a forma de comunicar, também numa obra de arte, é decisiva. E por isso usa com frequência mensagens diretas e impactantes. 

«Aqui é muito comum usar a ironia como figura de linguagem, presenciei isso várias vezes e, por vezes, é perigosa, as pessoas não a descodificam. Tenho de ser mais direto para comunicar. Como foi o caso desta bandeira», diz o artista.
Em relação a eventuais ataques e mensagens de ódio que tenha recebido, foi assertivo: «Aconteceu muito em 2020 e, agora, com esta bandeira. Sabia que ia acontecer e, de alguma forma, a gente aprende a lidar com a situação e a não colocar muita atenção nisto. As pessoas utilizam a internet como uma fuga, um escape. Sim, recebi muitas mensagens. E, com a publicação destas notícias, os comentários são de muito ódio gratuito de pessoas que não me conhecem. Dizem para voltar para o Brasil, mas esquecem-se de que eu também sou português. E alguns brasileiros pediam que eu fosse deportado! Assim, os portugueses e brasileiros até se uniram contra uma pessoa que não conhecem!», revela Saturnino.

‘Há opiniões para tudo’
João Pinharanda, diretor artístico do MAAT desde novembro do ano passado, desdramatiza as reações negativas à obra.
«Não houve nenhuma censura, o artista pode confirmar isso. E não tem havido nenhum protesto. Só me disseram uma vez que um senhor tinha escrito no livro dos visitantes que estava incomodado com aquilo», refere. Quanto à mensagem inscrita na intervenção, comenta: «É como se fosse um slogan, uma expressão muito usada no Brasil. Há opiniões para tudo: no meio artístico brasileiro, há uma grande radicalização das questões da presença das potências coloniais, orientação sexual, raça, etc. É sempre mais vanguardista e em rutura», reconhece o historiador de arte, crítico e comissário.

«Não quer dizer que não haja, na sociedade civil, uma parte que tenha a outra versão. Também houve protestos contra a ida do coração de D. Pedro IV para o Brasil. Agora, mais do que nunca, a arte é uma forma de intervenção política, social, ideológica e por aí fora. E é isso que se nota naquela zona da exposição e no geral. Foi por isto que foi um êxito. Não é uma exposição pacífica», reconhece o responsável do museu.

‘Tudo começou por um descobrimento mútuo’
Mas, afinal, houve ou não descobrimento? João Paulo Oliveira e Costa, historiador da Expansão Portuguesa e professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa está em desacordo quase total com o artista. Embora conceda que «a criação do estado brasileiro foi um processo inevitavelmente violento», qualifica a afirmação expressa na tarja como um «disparate».

«Desde 1500 até hoje repetiu-se o descobrimento no seu verdadeiro sentido – portugueses e europeus descobriram as pessoas e o espaço do Brasil enquanto os nativos descobriam os europeus e a sua civilização», refere o historiador.
«O alargamento do domínio territorial português verificou-se sempre em aliança com os nativos que se puseram desde o início ao lado dos portugueses. De facto houve matanças, promovidas pelo grupo luso-tupi, como houve matanças perpetradas pelos víquingues, pelos romanos, pelos mongóis, pelos astecas ou pelos incas e pelos próprios nativos do actual espaço brasileiro uns contra os outros. Ou seja a palavra ‘matança’ infelizmente está correta, mas não traduz uma especificidade dos portugueses», continua. «Não há país no mundo que possa afirmar que se desenvolveu sempre em paz e cuja população actual não descenda de invasores. Passa-se o mesmo no caso do Brasil. E tudo começou por um descobrimento mútuo, como está tão bem ilustrado pela carta de Pero Vaz de Caminha», conclui.

‘Não quis trazer a culpa, mas o debate’
Rodrigo Ribeiro Saturnino, por seu lado, esclarece: «Quando escrevi aquela frase, não quis trazer a culpa do passado para Portugal, mas sim o debate! E friso que não fui cancelado como a Veja referiu, isso foi sensacionalista. A ideia de acolhimento tem de vir com a aceitação da crítica. Não é uma questão da destruição da História», sublinha o artista.
O Nascer do SOL tentou ouvir os curadores da exposição Interferências, que fizeram a seleção das obras, mas não obteve resposta até à hora de fecho da edição.