‘Eles’, de Kay Dick, um romance resgatado ao olvido 40 anos depois

Editado pela Relógio D’Água em fevereiro, “Eles” é o grande romance da irreverente escritora, crítica literária e editora inglesa Kay Dick (1915-2001) dado à estampa originalmente em 1977. Margaret Atwood classificou-o mesmo como um livro “assustadoramente presciente”. 

Nascida em Londres Kay Dick foi em criança morar para a Suíça com a sua mãe que a teve em solteira criando-a sempre sozinha. Em adulta, de regresso ao seu país natal, foi livreira na Foyles sendo a primeira mulher a dirigir uma editora inglesa, a P.S. King & Son com apenas 26 anos. Nesta editora contribuiu para a edição de George Orwell. À parte essa função, escreveu regularmente resenhas críticas para os jornais The Times, The Spectator e Punch.

Embora Eles tenha arrecadado, no ano da sua publicação, o já extinto South-East Arts Literature Prize, não alcançou grande sucesso junto do público e não demorou muito, por isso, a sair de circulação. Agora em 2022, depois de se terem passado mais de 40 anos da sua publicação, por diversas razões, esta obra mantém-se mais atual do que nunca.

Primeiro porque o seu enredo ficcional, por não estar datado no tempo, não se encontra circunscrito a uma época.

Segundo porque a figura do narrador não está reclusa num género e eles permanecem inomináveis do início ao fim.

Terceiro porque ainda nos dias de hoje vemos a liberdade e a cultura serem constantemente ameaçadas. Mas não são estas três razões que bastam para que este seja considerado um livro visionário. Margaret Atwood classificou-o mesmo como um livro “assustadoramente presciente”. O tom alegórico do discurso, a resiliência consistente e a não conformidade dos personagens, artistas na maioria, assim como a desumanização galopante que norteia a esfera social deste universo conferem-lhe uma clarividência inabalável.

Sabemos que uma distopia é sempre o embate violento entre o real e o ficcional. Em Eles estamos precisamente no limbo destas realidades. De frente para esse embate. Incrédulos do mal que nos persegue, mas munidos de alguma esperança numa fuga, numa bolha de oxigénio, num mundo melhor. Mais livre, mais justo, humano e seguro.

Estamos juntos nessa fuga com cada um dos personagens que se sente enclausurado, perseguido. Com os pintores Julian e Claire, o pianista Russel, o escultor Sandy ou a cantora de ópera Fiona que, entretanto, foi sedada e internada porque a ópera “é uma arte perigosa, sugere demasiadas liberdades”. Mas talvez seja de Jane, a poeta e escritora de livros infantis, que foi brutalmente torturada, que o leitor se sinta mais próximo.

“Os seus livros para crianças estavam demasiado cheios de fantasia para eles a deixarem em paz.” E por isso eles queimaram-lhe todo o braço direito para que ela nunca mais escrevesse. “Quando eles atiraram os seus poemas para o lume, Jane precipitara-se instintivamente para diante: eles mantiveram-lhe o braço direito por cima das chamas durante oito minutos.” Mas Jane aprendeu a escrever com a mão esquerda. E cada vez escreve mais poesia.

Os artistas embora sejam sempre os mais perseguidos por eles, são invariavelmente os que manifestam mais resistência porque o seu lugar é o da não conformidade. Mesmo vendo as suas oficinas entaipadas, os seus livros roubados, incendiados, as suas esculturas brutalmente destruídas, estilhaçadas, ainda assim nunca baixam os braços.