Carta à Presidente da ANMP

Esta reunião, para a qual fomos agora convidados, faz todo o sentido, Senhora Presidente. Aliás, permita-me a correção: fazia todo o sentido, há alguns meses. Havendo já um acordo da ANMP com o Governo na matéria, o que há a discutir? Era importante discutir? Era, sim. Mas, estando já tudo decidido, nada mais há para…

por Isaltino Morais
Presidete da Câmara Municipal de Oeiras

 

Exma. Senhora
Dra. Luísa Salgueiro
M.I. Presidente da Associação Nacional dos Municípios Portugueses

 

A descentralização da governação, seja na decisão, seja no controlo dos recursos públicos, deveria constituir desígnio nacional. Portugal é, historicamente, um País centralizado. Até há poucos anos, a decisão de colocação de uma paragem de autocarros no mais recôndito lugar do território nacional era tomada no Terreiro do Paço.

Até ao 25 de abril de 1974 esta forma de governar o País entendia-se: depois do absolutismo iluminado do reinado de D. José, não mais o País conheceu uma modernização administrativa adequada ao espírito do tempo. Tivemos um século XIX marcado por revoluções sucessivas, que nunca deram estabilidade ao todo nacional. A esse século conturbado, seguiu-se uma revolução republicana, que também nunca estabilizou. Após a implantação da República, e até ao 25 de abril de 1974, Portugal não conheceu senão ditaduras, que não podiam abdicar de serem centralmente dirigidas pelos detentores do poder político.

O País não teve, até à revolução dos cravos, uma cultura de democratização do poder e, naturalmente, de aproximação das decisões das populações – reconhecidamente essencial para a qualidade das mesmas e da governação. Até 1974, o Governo não era verdadeiramente do Povo, era das elites, fossem elas quais fossem.

A criação do poder local democrático, conforme consagrado na Constituição de 1976, foi um enorme avanço, em relação ao até então conhecido.

Os primeiros anos de poder local democrático foram, consequentemente, de manifesta melhoria da qualidade da gestão da coisa pública local, a que acresceu uma outra importante transformação, relativa à capacidade de reivindicação. A eleição de líderes locais com legitimidade popular, e com maior conhecimento empírico da governação, leia-se com conhecimento real dos limites do seu poder de decisão, permitiu constatar os nós górdios da arquitetura administrativa nacional e, naturalmente, os seus efeitos nocivos para o desenvolvimento do País: muito do atraso relativo de Portugal decorre dos efeitos de tais nós.

Durante as décadas de 1980 e 1990, os Municípios avocaram, bem, o papel de poder concorrente da administração central, assumindo reivindicações que foram essenciais para o muito que o País evoluiu naquelas décadas. Então como agora, eram os autarcas quem mais sentia o pulsar das populações, o pulsar do País.

Independentemente da cor política de quem presidia à Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), não havia tendência alguma para subordinações ou seguidismos a diretórios partidários. Os Municípios eram parte da solução, mas eram exigentes e reivindicativos.

Na última década e meia, porém, assistimos a uma inversão nessa tendência: a ANMP não foi mais a mesma voz consistente e reivindicativa, assumindo uma postura de ‘câmara de reverberação’ das decisões nacionais dos partidos de poder.

Esta posição foi particularmente visível durante os anos da troika, quando foram possíveis todas as malfeitorias aos Municípios por parte de quem governava, revertendo muitos dos ganhos obtidos nas décadas anteriores. Começou-se, então, a interromper um ciclo de reconhecimento da capacidade do poder local, essencial para possibilitar uma efetiva tendência descentralizadora no País.

Desde então, muito se tem falado de descentralização, mas muito pouco tem sido efetivamente feito. Os Presidentes da República fazem juras de amor públicas à descentralização, os Primeiros-Ministros também, assim como os demais membros dos Governos, mas reformas que transfiram realmente a decisão e o controlo de recursos… pouco ou nada!

Confesso que eu próprio, Senhora Presidente, acreditei nas boas intenções da anunciada reforma de descentralização. Havendo um primeiro-ministro que tinha sido Presidente de Câmara (o segundo, desde 1974), com experiência real de terreno, e visão global de todos os níveis de administração, pareciam existir condições políticas para avançar para a modernização administrativa do País – até porque, confesso, as últimas décadas portuguesas são uma deceção em matéria de desenvolvimento.

Acontece, porém, que a dita reforma, bem intencionada no discurso, não é uma descentralização, é uma transferência do odioso para os Municípios, sem que se aproxime a decisão e sem que se transfira um envelope financeiro que permita uma correta gestão do que se transfere.

Esta reunião, para a qual fomos agora convidados, faz todo o sentido, Senhora Presidente. Aliás, permita-me a correção: fazia todo o sentido, há alguns meses. Havendo já um acordo da ANMP com o Governo na matéria, o que há a discutir? Era importante discutir? Era, sim. Mas, estando já tudo decidido, nada mais há para decidir. A discussão foi morta à nascença!

Permita-me que lhe diga, Senhora Presidente, que ao matarem-se discussões como esta, está a ser morto o espírito do poder local democrático, que tão bons frutos deu, nas primeiras décadas de democracia. Passámos de poder concorrente, reivindicativo e exigente, para mero ‘guichet’ do poder central. Ao invés de evoluir, recuámos décadas.

Acrescento ainda, Senhora Presidente, que não é apenas o espírito do poder local que se mata, mata-se o interesse público. Quando se transferem competências sem decisão e sem o correspondente envelope financeiro, não estamos a dizer toda a verdade aos portugueses. Diz-se que, com esta transferência de competências, vamos fazer melhor do que tem sido feito. Vamos efetivamente fazer melhor, porque gerimos melhor que o Estado Central. O que não dizemos é que vamos fazer melhor às expensas dos cofres dos Municípios.

Esta dita reforma vai fazer diminuir substancialmente as capacidades financeiras existentes, empobrecendo os Municípios e empobrecendo o País. Acresce ainda, que, não são conhecidos em toda a sua extensão, os efeitos financeiros a longo prazo desta transferência de competências, particularmente para os cofres dos Municípios mais frágeis (que são a larga maioria da realidade autárquica nacional).

Face a tudo isto, e agradecendo o convite que nos foi feito, nada mais há a decidir. Como tal, não iremos estar presentes nesta reunião, transformada que foi num convívio social de autarcas, no longo velório do Poder Local que um dia Portugal teve.

Com os melhores cumprimentos,