Décadas antes da viragem a uma direita sem complexos em vários países da Europa (e das Américas), onde nunca imagináramos que o credo social-democrata poderia ser beliscado, já o marxismo se revelara imprestável para analisar as sociedades do século XXI.
Com efeito, a complexidade destas sociedades não pode ser conceptualmente apreendida com base nas ferramentas analíticas legadas pelo genial Carlos Marx, que ainda assim permanece um dos autores com a influência e longevidade mais longas da história contemporânea. Pensar o mundo contemporâneo com base na simplória oposição entre Capital e Trabalho é um exercício fútil e irrisório. Marx escreveu em plena primeira revolução industrial; nós vivemos numa época de revoluções tecnológicas. A net e a globalização mudaram tudo.
Os miseráveis e desmunidos do mundo já não são a ‘classe operária’, que como tal praticamente se evaporou, mas populações de difícil categorização social entre as quais avultam os imigrantes fugidos dos seus paupérrimos países de origem. Estes são os novos ‘operários’, mas, novidade surpreendente, não são ‘anti-capitalistas’, pelo contrário, pedem ao Capital que lhes dê empregos e lhes proporcione um modo de vida decente, ainda que modesto. Não são revolucionários.
A esmagadora maioria nunca ouviu falar de Marx nem da revolução russa de 1917.
O primeiro prego cravado no caixão de Marx foi o eurocomunismo da segunda metade do século XX. Berlinguer em Itália, Marchais em França e Carrillo em Espanha sacudiram a tutela de Moscovo e proclamaram a sua independência. Estavam cansados dessa vassalagem humilhante e entendiam que podiam e deviam integrar-se nas social-democracias ocidentais.
O eurocomunismo morreu como se sabe. Hoje em dia, restam na Europa uma magras sobras de partidos comunistas que para nada servem, a não ser para matar as saudades de alguns nostálgicos. A excepção portuguesa, conhecida como a ‘geringonça’, apenas confirmou que a sua substância não passava disso mesmo, de uma solução governativa desesperada para manter António Costa no poder.
Nas últimas eleições, Bloco e PCP perderam mais de metade dos seus deputados, comprovando a inviabilidade de uma esquerda marxista, radical, que se tornou novamente marginal e sobrevive hoje em dia remetida para a periferia do sistema.
Mas o marxismo ainda não estava morto e enterrado. Ele vivia nas entrelinhas da social-democracia – centro-esquerda –, um regime que teve os seus anos de ouro na segunda metade do século XX, nas primeiras décadas que se seguiram à segunda Guerra Mundial.
A social-democracia era uma tentativa para conciliar o capitalismo com o comunismo, moderando as reivindicações deste – abolição da propriedade privada substituída pela colectivização e por uma economia planificada pelo Estado – e introduzindo uma economia de mercado social, ou seja, um mercado relativamente regulado e um Estado carregado de responsabilidades sociais. Não é difícil discernir neste casamento a influência de Marx.
O problema está em que o sucesso epocal da social-democracia acabou por corroer os seus fundamentos. Amansou a luta de classes. Mas fez de cada cidadão um aspirante a rico ou capitalista. Virou a mesa de pernas para o ar. Cada cidadão, o protagonista por excelência do Estado social-democrata, tornou-se um consumidor, e o consumismo prevaleceu sobre a cidadania. Outro problema, relacionado com este, é que as exigências de protecção feitas ao Estado se alargaram até aos limites, ou para lá dos limites, da capacidade financeira pública. Nos Estados social-democratas, o dinheiro nunca é suficiente. O consumismo, não a cidadania, é actualmente o que define os excluídos. O consumismo, não a pertença a uma classe social. O capitalismo venceu o comunismo: queremos todos ser ricos.
Não apenas queremos todos ser ricos, como relegámos para o caixote do lixo da história os mais elementares deveres de compaixão e solidariedade. Veja-se a crise dos refugiados, que convém não confundir com imigrantes, embora também estes devessem ter um acolhimento fraterno. Pois bem, refugiados e imigrantes são um dos principais ingredientes de que se alimentam as novas direitas radicais que se estão a impor na Europa.
Não subscrevo a tese da xenofobia: o que move a animosidade dos novos cidadãos-consumidores é a concorrência no mercado de trabalho, e não o facto de os arribados à Europa serem estrangeiros, pese embora o facto de que a integração socio-cultural destes novos hóspedes possa suscitar conflitos sociais e coloque aos Estados problemas muito difíceis de resolver.
A social-democracia, por mais subsídios que invente, não resolve estes problemas: os imigrantes e refugiados são mal vindos, e o dinheiro que distribui nunca é suficiente. Não há nada em Marx que nos ajude a pensar este tipo de questões, como o fascínio do consumismo e o desejo de riqueza.
Porquê? Porque não há nada em Marx que leve em conta a natureza humana. Mas, muito precisamente, o que fazem os partidos de direita radical, ditos populistas, é levar em conta a natureza humana e ir ao encontro do que nela existe de menos nobre, mas que é o que é e, pelos vistos, o que dá votos.
Marx morreu.