‘Se há pessoa que merece este prémio é o Svante’

Durante cinco anos, o investigador português João C. Teixeira trabalhou ao lado de Svante Pääbo, o vencedor do Prémio Nobel da Medicina «pelas suas descobertas sobre os genomas de hominídeos extintos e a evolução humana».

Há 11 anos, João C. Teixeira, mestre em Genética Forense e licenciado em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, decidiu mudar-se para Leipzig, na Alemanha. O motivo? Desde o Ensino Secundário que tinha o sonho de estudar e trabalhar no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. «Como acabava de ser sequenciado o genoma do Neandertal, parecia-me ideal. Os meus maiores interesses eram a genómica comparativa, entre o Homem moderno e os grande símios (chimpanzés, gorilas, orangotangos). Fui trabalhar para lá sob a orientação da Aida Andrés e do Svante Pääbo, que era o diretor do departamento», explica ao Nascer do SOL, recuando até 2011 para explicar como travou conhecimento com galardoado com o Prémio Nobel da Medicina deste ano. Juntamente com Aida Andrés, professora de Genética, Evolução e Ambiente, Pääbo viria a ser seu orientador, desempenhando um papel fulcral para a elaboração da tese Long-term balancing selection in the genomes of humans and other great apes.

«As amostras que estudei faziam parte da coleção do Svante. Não trabalhei nas questões dos neandertais, o ADN antigo para mim veio mais tarde, já depois de sair de Leipzig. Candidatei-me em 2011, o doutoramento começou em setembro e terminou em 2016. Entrei em contacto diretamente com a Aida porque o Max Planck tem um programa doutoral, o Leipzig School of Human Origins», continua o investigador que, atualmente, trabalha na National Australian University, em Camberra. 

«Estava habituado à realidade portuguesa em que há pouco dinheiro para tudo», recorda. «E eles convidaram-me para fazer a entrevista presencialmente, apresentei o meu trabalho de mestrado, pagaram-me a viagem… Foi tudo muito surreal. A minha família achava que era garantido, estava contente, e eu disse que devíamos ter calma porque se trata de um programa bastante competitivo». Foi «extremamente bem recebido» e, desde o primeiro momento, ficou surpreendido com a logística e o método de funcionamento do instituto.

«Lembro-me de ficar muito assustado porque me deram uma folha e tinha 30 minutos para falar com 20 e tal pessoas, além da apresentação oral. Estando do outro lado, muitas destas pessoas eram também alunas de doutoramento e pós-doutorandas. Quando vamos fazer um doutoramento, é importante perceber se, do ponto de vista pessoal, queremos trabalhar com aquelas pessoas», diz, sublinhando que o levaram logo a jantar fora para o conhecerem para lá do ambiente académico e profissional. Entendeu de imediato «o modo de gestão do Svante: é muito horizontal, sempre houve uma discussão entre todos os elementos».

«É claro que as últimas decisões são sempre dele, mas todos contribuímos. É uma pessoa tão à vontade com a sua qualidade científica que não precisa de usar ferramentas autoritárias de gestão», revela, constatando que Pääbo, diretor do Departamento de Genética no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, desde 1997, «toma a responsabilidade pelas decisões».

«Muitas das vezes, chegava à nossa beira, estávamos a jantar e ficávamos a trabalhar até mais tarde. Ele juntava-se a nós, havia toda uma relação de proximidade que pode não ser esperada de uma pessoa que ganhou um Prémio Nobel. É terra a terra e essa humildade/simplicidade é uma diferença que ele marca para muitas pessoas», afirma o português sobre o reconhecido biólogo sueco, recordando que existiam «reuniões mais particulares, reuniões mais gerais do departamento, etc.» até porque «o Svante sempre viajou e viaja muito, há alturas em que não estava lá e lembro-me de brincadeiras que fazíamos».

«Há uns anos ganhou um Breakthrough Award que é chamado ‘Óscar da Ciência’. Tirou uma fotografia com a Christina Aguilera, posou para uma foto com ela e perguntou-lhe o que ela fazia. E ela respondeu: ‘Sou cantora’ e ele: ‘Ah, que engraçado!’». João Teixeira aponta a descontração como um dos traços do seu orientador de doutoramento. «Imprimimos a fotografia em A1, pusemos na nossa sala de reuniões e escrevemos ‘Svante, we love you too!’ na brincadeira». 

Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque… 

Será que se deve separar as vidas profissional e pessoal? No Max Planck não existe propriamente essa máxima, mas sim a ideia de que os momentos de trabalho e de lazer podem confundir-se. «O instituto tem uma sauna, que é famosa mesmo entre colegas de outros centros. Ele fez questão de termos uma, uma parede de escalada, uma mesa de matraquilhos (uma vez joguei com ele e o filho)… Ainda hoje, tenho uma relação de grande amizade com o Svante. Já combinei ir a Leipzig em dezembro para festejarmos!», conta, frisando que desejava ter feito a viagem no ano passado, mas não foi possível devido à pandemia.

«Toda a gente ficou contente porque sentimo-nos integrados. Apesar de eu não ser a pessoa que trabalhava mais intimamente com ele, porque ainda não estava em determinados projetos, tive a sorte de ele ser meu orientador e publiquei artigos com ele também. Sou um sortudo por conhecê-lo», enfatiza João C. Teixeira, explicando que ainda não conseguiu conversar com o investigador, mas pediu a pessoas que estão com ele para o avisarem que daqui a dois meses estarão juntos.

«Temos planos para um jantar e queremos celebrar. Foram cinco anos de partilha e é algo único! Acima de tudo, é um privilégio: por ser a pessoa que é, por literalmente ter inventado uma área da Ciência (a paleogenética), mas também por ser de trato simples e fácil. Lembro-me de imensas alturas em que eu participava nas reuniões, dava as minhas opiniões e não tinha medo de expressar os meus pensamentos. E ele ficava do lado dos alunos e não de alguém superior em termos hierárquicos se achasse que isso devia acontecer», acrescenta, referindo que o processo de elaboração da tese de doutoramento «foi relativamente pacífico». 

«A participação mais ativa que o Svante teve foi no início e sabíamos que havia um grupo rival prestes a publicar e queríamos falar com ele. Tratamo-nos todos por tu e ninguém o tratava por professor! Eu disse-lhe: ‘Acho que o melhor é falarmos com eles, coordenarmos os timings da publicação’ e ele olhou para mim e disse: ‘Queres ser um teddy bear, ter uma atitude nobre, mas eles no teu lugar não fariam isso’. Então, recomendou-me que acelerasse a publicação. Fizemos mais análises e o outro grupo publicou antes de nós», declara, assumindo que, nesse dia, compreendeu que, «no fundo, o mundo da Ciência é um mundo brutal em termos de competição. Ele, trabalhando com o genoma de Neandertal, sempre esteve envolvido nestas coisas». 

«Na minha defesa, em 2016, houve uma coisa interessante: eu estava em Paris, no Instituto Pasteur, e fui defender a tese a Leipzig. Faltava um membro do júri e aquilo, para mim, foi ainda mais stressante. O Svante, de forma muito descontraída, disse que ia ser melhor porque poderíamos ir todos a Paris para eu defender a tese posteriormente. Depois íamos visitar a cidade!», recorda, ilustrando o sentido de humor do geneticista de 67 anos.

«Entretanto, arranjaram um professor e, mais tarde, apareceu o membro do júri que faltava. E há uma cerimónia muito interessante: ele arma-nos cavaleiros, doutores, parece um rei! Bate-nos mesmo com a espada nos ombros. Depois, seguimos para o instituto e atiram-nos ao lago. Tal como fizeram agora com ele quando ganhou o prémio Nobel», revela, mostrando a sua solidariedade para com os estudantes «que defendem a tese nos meses muito frios e ficam gelados!».

«Relativamente ao prémio, estamos a falar da evolução humana e não está de forma direta à Medicina, mas fiquei sempre na dúvida. Seria na Química? Na Física? Na Austrália, em agosto, falei disto com um colega, e eu disse que ele tinha tudo para ganhar, mas que havia o problema de o trabalho se situar num limbo científico. Para quem o conhece, é uma surpresa que não o é», indica, referindo-se ao também autor do livro O Homem de Neandertal, lançado, em Portugal, em outubro de 2019 e que já se encontra esgotado em algumas livrarias.

«Em 2018, estive em Leipzig, entrei no departamento, aquilo é open space, foi desenhado há 20 anos mas é perfeitamente atual, e ele estava a dar uma aula. Eu levantei a mão, pedi-lhe desculpa e ele disse aos alunos: ‘Desculpem’, parou a aula e foi abraçar-me. Tenho estes episódios muito giros com ele, mas espero ter mais!», exclama, admitindo que gostaria muito de trazer Svante Pääbo a Portugal «para ele dar uma palestra – é uma condição sine qua non – mas para também visitar o Porto e a zona toda do Douro». 

«Quando fui para o Pasteur, disse que nunca trabalharia num instituto tão bom quanto o Max Planck. Foi a primeira vez em que morei sozinho, estava num país completamente diferente… É um sítio muito especial. Temos pessoas muito boas, com reputação mundial, e aquilo intimidava mas, por outro lado, tínhamos vontade de agarrar todas as oportunidades». Revela que viu colegas de universidades prestigiadas a não serem escolhidos e outros de instituições de Ensino Superior menos conhecidas a serem selecionados.

«O prémio é individual, mas já escrevi a muitos colegas porque trabalham há 15, 16 anos com ele e têm um papel muito importante nesta conquista. Se há pessoa que merece este prémio, é o Svante: fez-se justiça! Ele é o impulsionador e o pai disto e nem era suposto trabalhar nesta área». Teixeira conta que, sem que o seu orientador de doutoramento tivesse conhecimento, Svante secava e apodrecia carne para extrair ADN. «Ele submeteu um artigo na Nature, e perguntou ao orientador se queria publicar com ele. O orientador disse logo que não, que o trabalho tinha sido dele. E, aí, começou toda a área da paleogenética», explica.

«O departamento era avaliado externamente e, uma vez por ano, falávamos e, como alunos de doutoramento, cada um tinha três minutos. Eu vim a Portugal, não tinha slides preparados, apresentei o meu trabalho e ele perguntou-me: ‘Então e porque só estudamos seleção natural nos grandes símios? Não queremos ser os melhores do mundo?’ e eu: ‘Sim, idealmente’ e ele ‘Então, porque não estudamos mais espécies?’», recorda. «Ele pensava sempre naquilo que podíamos fazer para sermos os melhores e transmitirmos o melhor conhecimento às pessoas», acrescenta João C. Teixeira. «No instituto, havia essa cadeia de liberdade de que falei, mas, chegados à hora de apresentação do trabalho, fazíamos muita discussão científica. Acho que até aprendi mais pela riqueza das discussões do que propriamente por artigos científicos».