“Na sibéria, com tudo coberto de neve, sentimo-nos fora do espaço e do tempo”

Podia ser o título de um romance, mas não: Sophy Roberts foi mesmo à procura de pianos na Sibéria e contou as histórias destes instrumentos. O resultado é um livro improvável que combina a música e a história com a poesia e os segredos de uma das regiões mais inóspitas do mundo.

Escritora, jornalista, colaboradora freelancer do Financial Times, do Wall Street Journal e da Bloomberg, Sophy Roberts tem um passaporte repleto de carimbos pouco comuns ou mesmo exóticos. Licenciada em Oxford e Columbia, as suas viagens já a levaram a países como o Congo, o Ruanda, Madagáscar, a Mongólia ou a Papua Nova Guiné. Mas foi na Rússia que encontrou o tema para o seu primeiro livro, agora editado em Portugal pela Temas &_Debates/ Círculo de Leitores. Os Pianos Perdidos da Sibéria entretece a narrativa de uma busca detetivesca com o passado traumático da região, marcado a ferro quente pelos horrores do Gulag, o cruel sistema prisional montado para castigar os dissidentes do comunismo – e muitas vezes até os seus fiéis.

Nestas páginas, música, literatura, história russa, aventuras e vidas humanas cruzam-se e fundem-se harmoniosamente para reconstituir o passado e o presente de um espaço cheio de neve e de poesia, mas também de cicatrizes e de fantasmas.

A autora conversou com o Nascer do SOL por videoconferência, a partir do Nepal, onde se encontrava a trabalhar.

Porquê andar à procura de pianos antigos na Sibéria? Aprendeu a tocar este instrumento?

Quem me dera ter aprendido. Aliás, antes de começar pensei que quando terminasse este livro queria saber duas coisas: tocar piano e falar russo. Não consegui nem uma nem outra, porque escrever o livro já foi complicado quanto baste. Por isso, não, infelizmente.

Então foi mais pela beleza do instrumento em si? Steve Jobs, o fundador da Apple, tinha um piano de cauda na sua sala de estar, não porque soubesse tocar, mas apenas porque achava um objeto muito bonito.

No meu caso teve mais a ver com uma expressão que ouvi alguém dizer na Mongólia: ‘Juntar duas coisas que não combinam’. E para mim, como escritora, os pianos e a Sibéria eram duas coisas dissonantes, mas que resultavam. É como uma boa metáfora, que junta duas palavras aparentemente inconciliáveis e traz uma nova energia à escrita. Os pianos perdidos da Sibéria pareceu-me uma imagem tão forte e improvável, tão promissora, que foi o suficiente para me fazer querer começar esta investigação. É fantástico quando percebemos que encontrámos um tema com profundidade e, ao fazermos a pesquisa no local, vamos levantando as várias camadas e descobrindo a história que queremos contar.

Antes deste trabalho já tinha estado alguma vez na Sibéria?

Nunca. Tinha estado na Rússia uma vez há bastante tempo, quando andava na escola, com 17, 18 anos, pela altura em que o país se estava a desagregar. Foi uma experiência incrivelmente estranha e também excitante. Embora nunca tivesse lá ido, a Sibéria estava muito presente na minha imaginação porque passei muito tempo na Mongólia. Aquela extensão da fronteira russa está sempre lá, como uma sombra. E, claro, não se pode ser um viajante sem se estar consciente da Sibéria, mais não seja pela quantidade de rotas de voo que passam por cima deste espaço. Portanto a Sibéria esteve sempre muito presente na minha imaginação. E, quando me atribuíram este trabalho para o jornal, foi uma obsessão que se concretizou e passou a fazer sentido.

O que mais a atraiu na Sibéria? A distância, o desconhecimento, a estranheza deste território?

Foi uma combinação de coisas muito diferentes. Se tiver em conta o nível mais superficial, a paisagem é completamente hipnotizante. Como europeus, trata-se de algo a que não estamos habituados, que é uma paisagem sem cercas nem vedações. Cresci na Escócia, que é um território bastante selvagem, mas a escala da Sibéria deixou-me a cabeça a andar à roda, e haver tão poucas pessoas numa extensão tão vasta também foi muito poderoso, fez-me sentir as forças primordiais. Mas isso foi só a primeira impressão. Depois comecei a escavar e a envolver-me com o lugar. As pessoas comoveram-me. Os siberianos são contadores de histórias natos. E há uma geração de pessoas que ainda traz consigo um nível de educação soviética muito sofisticado. Conseguem falar de literatura, de música, de história de uma forma que achei extremamente enriquecedora. Portanto havia as pessoas e havia o lugar. Até que comecei a perceber que o piano podia tornar-se o meu fio narrativo através de 200 anos de história da colonização imperial. Dava para ver um arco a cruzar tudo isto, o fio condutor de uma história grandiosa. Isso já tem mais que ver com a técnica de escrita do livro. O piano deu-me algo a que me agarrar enquanto navegava no alto-mar do passado desta região imensa.

Como é viajar de comboio na Rússia? Em tempos ouvi histórias bastante macabras sobre o que podia acontecer a um estrangeiro nas carruagens russas…

Costumo dizer que viajar só é seguro enquanto soubermos como podemos sair da situação em que estamos. Por isso estava sempre muito atenta à minha via de fuga. Isso implicava que, se estava numa carruagem onde não me sentia à-vontade, ia à procura de outra. E implicou também trabalhar com diferentes intérpretes antes de encontrar a pessoa certa. E essa pessoa certa era também um dos meus mecanismos de segurança, em quem confiei para ler energias à nossa volta que estavam para lá da minha compreensão. Mesmo assim houve muitos momentos em que sim, me senti muito ameaçada, mas não foi à luz do dia nem de modo algum nos comboios. Politicamente, claro, foi difícil trabalhar na Sibéria. E uma vez em Tomsk estava com o meu colega fotógrafo numa espécie de airbnb e ficámos fechados na rua, sem chave, com uma temperatura de vinte graus negativos. O nosso intérprete estava a dormir noutro sítio e não tínhamos telemóvel. E os blocos de apartamentos, da era de Khrushchov, eram todos iguais. Isso foi assustador porque não tinha uma via de fuga. Quanto aos comboios, adoro viajar de comboio, porque nos dá tempo para conversar e conhecer os outros passageiros. Especialmente na Sibéria, onde as viagens são longas, temos tempo para comer em grupo, para jogar às cartas e para estabelecer algum tipo de ligação. Para mim, andar de comboio foi sempre um enorme prazer.

Sentiu muitas vezes que estava na Rússia de Putin ou a Sibéria é uma região tão remota que forma quase um país à parte?

Senti ambos. A Sibéria dá-nos um sentimento muito forte de estarmos a uma grande distância de Moscovo. As pessoas seguem com as suas vidas, têm de comer, de se aquecer, de educar os filhos. Andei muito por esses ambientes familiares e aí não senti que estivesse na Rússia de Putin, senti-me entre amigos. Mas assim que passava para uma situação em que tinha de falar com alguém num registo mais público, por exemplo com um jornalista ou com alguém que trabalhasse na esfera do governo, claro, já estava na Rússia de Putin. E aí temos de ser muito cautelosos com o que dizemos e com o que perguntamos às pessoas. Desde o início da catástrofe da Ucrânia, muitas pessoas têm-me perguntado como estão os amigos que fiz na Rússia, como têm passado, mas eu também não sei, porque não é seguro falar sobre isso.

A Sibéria é famosa pelas temperaturas geladas. Sofreu com o frio ou ia preparada?

Faz tanto frio que às vezes a minha máquina fotográfica e o meu telemóvel deixavam de funcionar. Tudo deixa de funcionar. Mas perto do Lago Baical [o lago mais profundo e mais antigo do mundo, que contém cerca de 20% da água doce do planeta], conheci uma senhora maravilhosa que me disse: ‘A Sibéria não é fria. É apenas uma questão de guarda-roupa. Basta vestirmo-nos da maneira apropriada’. E tinha toda a razão. Nestes tempos modernos, com toda a tecnologia de que dispomos para nos aquecermos, não temos desculpa para passar frio. Sim, faz um frio cortante. Mas uma das coisas extraordinárias na Sibéria é como eles sabem manter as casas tão quentinhas. Podemos mergulhar na água gelada do lago e logo a seguir estamos numa sala mais quente do que qualquer outra onde alguma vez estive. Dormimos sempre bem, quentes e confortáveis, mesmo numa cabana de madeira ou no hotel mais baratinho. Eu viajei no inverno. Quando tudo está coberto de branco, quando desaparecem todos os resíduos industriais, quando o lixo e a barafunda da vida humana ficam escondidos pela neve, só se vê as árvores, o céu e o brilho daquele branco intenso, tem um efeito muito forte, primordial. Sentimos quase como se estivéssemos fora do espaço e do tempo.

Mas também esteve lá no verão.

Sim, aí achei muito desconfortável, sobretudo por causa dos mosquitos. São terríveis! Mas também não gostei porque o calor deixa à vista as entranhas da tundra, da paisagem da estepe, que não tem a poesia do inverno siberiano. A própria literatura russa está impregnada da sazonalidade. Não tenho problemas nenhuns em dizer que acho o inverno muito mais sedutor.

Gostava que me descrevesse um pouco mais da paisagem siberiana. É apenas um grande vazio? É monótona? É diversificada?

É muito diversificada. O Lago Baical, por exemplo, é bonito independentemente da estação. Tem belas florestas de cedros à volta, que no verão ficam com as folhas douradas. E a água também tem um espectro de tons incrível, de uma espécie de azul-cobalto brilhante até uma transparência incolor imaculada, é extraordinário. E depois temos ainda as bétulas que quando não há neve ficam ainda mais prateadas. Esta zona é incrivelmente bonita no verão. Mas também estive em Birobidjan, a região autónoma judaica no Leste. Não falo muito disso no meu livro, mas achei um sítio tristonho. É uma zona muito plana e pantanosa, com uma paisagem monótona  onde começam grandes campos de cereais, junto à fronteira com a China.

Um sítio de que fala no seu livro é a Kamchatka, que eu só conhecia do Risco [jogo de tabuleiro de estratégia, muito popular na décadas de 1980 e 1990].

Pois, eu também!

E mesmo assim, confesso, não tinha a certeza se existia mesmo…

Acabei por estar lá duas ou três vezes, tanto no inverno como na estação lamacenta a que os russos chamam ‘Rasputitsa’. Quando a neve derrete, os animais selvagens saem cá para fora. E saem mesmo. Centenas de ursos e uma vida marinha inacreditável, como nunca tinha visto em lugar nenhum da Terra. Fica a abarrotar de vida selvagem, que não se vê no inverno. O que se vê no inverno da Kamchatka é uma paisagem dramática de neve, gelo e fogo, porque é vulcânico. E a escala! Nunca consegui habituar-me à escala, porque venho de uma pequena ilha, e vai-se a um sítio destes e impressiona. O grande desafio deste livro, em certo sentido, foi a escala. O piano acabou por ser uma solução literária, proporcionou-me uma bússola. De outro modo ter-me-ia sido difícil orientar-me como jornalista de viagens.

Essa escala desmesurada deve ser por vezes muito aborrecida. Lembro-me de ler um relato de um casal de viajantes que atravessou a Europa e a Rússia de carro e que se queixava de passar horas e horas a andar sem ver nada, só uma espécie de vazio sem fim.

Pode ser aborrecido. Mas há uma personagem importante no meu livro chamada Tio Vitya [descrito como um geólogo que «usava um barrete de lã próprio de um gnomo» e cuja barriga, sentado ao volante, «espalhava-se tanto que era difícil manusear a alavanca das mudanças»]. O Tio Vytia tornou-se para mim uma espécie de amuleto da sorte. Nas viagens longas ele falava, falava, falava, e contava-me histórias, o que encurtou muitíssimo essas estiradas. Como jornalista, posso ir a um sítio como este onde estou agora, no Nepal, trabalhar de forma profissional, rápida, e quando regresso a casa já tenho material para escrever a minha história. Mas há vezes em que não conseguimos evitar essas viagens longas, não há atalhos nem dá para fazer batota, temos de nos sujeitar. Isso fez-me também pensar nos valores que me interessam enquanto escritora, e que às vezes esqueço na vertigem do jornalismo. Para escrever este livro tive de passar longas temporadas na Sibéria, por um lado para aproveitar os vistos, por outro porque tenho dois filhos e preferia passar mais tempo fora seguido do que estar sempre a ir e vir e a deixá-los preocupados. Ter estes grandes blocos de tempo à minha disposição deu-me a oportunidade de escrever e de pensar de uma forma que nunca tinha feito enquanto jornalista. Por isso, estas viagens longas revelaram-se uma dádiva, porque podia sentar-me, ler muito, escrever. Por exemplo, ler Dostoiévski em Tobolsk [onde o autor de Crime e Castigo esteve detido numa colónia penal] é uma experiência especial. Estas viagens longas, no fundo, deram-me um espaço que eu sempre quis.

Costuma viajar sozinha? Não é perigoso?

Para ser completamente honesta houve momentos em que dei graças por estar com um colega fotógrafo, um americano com quem costumo trabalhar, até porque muitos homens siberianos só falam com outros homens, e não me dirigiam a palavra. Noutras alturas, ajudou muito ser mulher. Mas houve uma situação em que estava na Península de Iamal e um grupo de homens – homens russos, fortes – aproximou-se desta comunidade de tendas onde eu me tinha instalado. Apareceram em motas de neve, estavam todos a beber vodca e comecei a ficar nervosa, porque estava a dormir numa tenda sozinha. Puseram-se a brindar com os copos e a certa altura disseram para mim: ‘Agora tu brindas connosco’. Levantei-me e disse, o que era uma mentira descarada: ‘Brindo ao meu bebé, porque estou grávida!’. Na Rússia eles têm um respeito enorme pela figura da mãe e a partir daí foram imensamente atenciosos. Diziam-me ‘Tens de descansar’ e não fizeram mais barulho. Às vezes temos de jogar com as situações.

Outro dos sítios onde esteve foi Kolimá. Viu os lugares de que Varlam Shalamov [detido em 1937 por ‘atividades anti-revolucionárias’, passou 17 anos no Gulag] fala nos seus Contos de Kolimá?

Shalamov é um escritor que eu adoro, embora só recentemente a sua obra tenha sido traduzida para inglês. E queria encontrar ligações a alguns dos seus versos, especialmente um em que diz: ‘Era bom que as lágrimas dos condenados não tivessem cheiro’. A profundidade dessa experiência está fora do nosso alcance, só podemos percebê-la através da poesia, mas ir lá permitiu-me ver os lugares de que fala e ajudou-me a enquadrar a sua obra. Foi muito importante para mim ir a Kolimá, porque não se pode perceber a Sibéria sem conhecer esse lugar. E foi duro. Estive lá durante três, quatro semanas, e achei um sítio sinistro, assombrado. Sinceramente, senti-me muito ameaçada. É uma história de que, na minha educação britânica, nunca tinha ouvido falar e por isso foi uma aprendizagem. Shalamov deu-me a entrada literária para esses acontecimentos. Mas estar lá, ver as ruínas daquele terror é algo que mexe muito connosco a nível emocional.

Também deve ter sido muito especial conhecer um sobrevivente do Cerco de Leninegrado [momento-chave da II Guerra Mundial, em que os nazis tiveram a cidade cercada durante cerca de 900 dias, com a população a viver em condições duríssimas, registando-se até episódios de canibalismo].

Sabe? Não foi nada planeado. Ele simplesmente referiu, pouco depois de nos termos conhecido num café, que tinha estado em Leninegrado. E é disso, desses encontros, que tenho muitas saudades. O que aconteceu na Rússia ao longo dos últimos cem anos – e está de novo a acontecer agora – é algo de extraordinário. Foi uma mudança explosiva. E as pessoas tinham de lidar todos os dias com essa mudança. Umas escolheram afastar-se e ir viver recatadamente para a Sibéria, outras escolheram envolver-se e cada um encontrou o seu lugar. Esse senhor, Stanislav, tinha já uns noventa anos quando o conheci. No Cerco de Leninegrado viu pessoas a morrer à fome, viu cadáveres na rua, e nem percebeu do que se tratava, porque era miúdo. E apesar de tudo isso criou empatia com o inimigo, e perdoou aos alemães depois do fim da guerra. Ele tornou-se para mim um modelo moral: modesto, educado, simpático. Alguma vez falei com ele sobre Putin? Não. Por vezes temos de deixar as pessoas contar a história que querem. Ele era quase cego, mas lembrava-se com absoluta clareza das imagens do Cerco. Estar com ele foi como sentar-me à mesa com história viva.

Ao ler o seu livro, por vezes pensei em como a música pode mudar consoante o lugar onde a ouvimos. Lembrei-me de Karen Blixen quando fala, em África Minha, do seu gramofone a tocar Beethoven na savana. Ou do organista Albert Schweitzer, que tocava Bach em Lambaréné, no Gabão. A música pode assumir um significado especial em certos lugares?

Sem dúvida. Sei que é a Sonata ao Luar é um cliché, já a ouvi dezenas de vezes, chega a um ponto em que não me diz nada. Mas ouvi-la, como eu ouvi, na Kamchatka, numa sala cheia de jovens escritores que eram todos artistas e músicos, tocada num piano muito antigo, foi um momento poderoso. O contexto muda tudo. Quando se junta coisas que não jogam, acontece algo original. Ou ouvir um piano de cauda acompanhado por um morin khuur, um instrumento mongol com cordas de crina de cavalo, que é usado pelos nómadas. São duas coisas que em princípio nunca se juntariam, um grande piano burguês e um violino que os nómadas levam ao ombro quando andam pela estepe, mas aconteceu e eu estava lá e foi emocionante. Há uma expressão que ouvi uma vez uma psicoterapeuta usar e que acho que se aplica a este caso: ‘um vazio fecundo’. Como escritora, foi isso que encontrei com os pianos perdidos da Sibéria, esse vazio fecundo. E com o gramofone na savana passa-se o mesmo: abre-se uma espécie de incongruência que se torna estimulante para a imaginação.