O título de um livro tem que se lhe diga. Tal como o nome de uma pessoa, por muito pouco que nos revele sobre o seu detentor, nem por isso deixa de constituir um elemento decisivo da identidade. Um título pode ser curto ou longo; forte ou delicado; direto ou sugestivo; banal ou peculiar. Há títulos bons, títulos maus e títulos assim-assim. E, de tempos a tempos, aparece um título perfeito. Mas o mais importante, talvez, é possuir a capacidade de se insinuar, de penetrar e ganhar vida própria na nossa imaginação.
Foi justamente por causa dessa capacidade que há umas semanas dei por mim com uma necessidade súbita e inexplicável de ler O Monte dos Vendavais, o clássico de Emily Brontë publicado pela primeira vez em 1847. Que título belíssimo! – e a tradução portuguesa, diga-se, não fica atrás do original, Wuthering Heights.
A capa da minha edição (Presença) mostra apropriadamente uma árvore com os ramos quase deitados, uma deformação sem dúvida resultante da força indómita dos ventos.
«A residência de Mr. Heathcliff chama-se Monte dos Vendavais em virtude da turbulência atmosférica a que a sua localização a expõe, em tempo borrascoso», descreve Lockwood, o narrador da nossa história, que começa no ano de 1801. «Na verdade, ventilação pura, estimulante, é coisa que nunca lhes deve faltar, lá em cima: pode avaliar-se a força do vento norte, quando sopra sobre a quina, pela inclinação excessiva de alguns abetos anões, ao fundo da casa, e por um renque de espinheiros esqueléticos, com todos os ramos estendidos para um lado, como se pedissem esmola ao Sol. O arquiteto teve, felizmente, a previsão de a construir sólida, com as janelas estreitas profundamente encravadas na parede e as esquinas defendidas por grandes pedras salientes».
Às primeiras páginas, estranhamos que, tendo sido o livro escrito por uma mulher, o narrador seja um homem. Mas logo entra em ação a governanta, Nelly Dean, a quem Lockwood pede para lhe contar a história dos peculiares habitantes daquela casa.
O que se segue é um autêntico vendaval de desgraças e infortúnios. Tudo começa com uma deslocação de Earnshaw, o dono do Monte dos Vendavais e patriarca da família, a Liverpool. No regresso, traz consigo um pequeno órfão, um menino de tez escura e modos grosseiros, aparentemente vítima de abandono e maus-tratos. Heathcliff – assim se chama o rapaz – não é acolhido por todos por igual: o irmão adoptivo detesta o recém-chegado e não perde uma oportunidade de o prejudicar; quanto à ‘irmã’, Catherine, torna-se próxima dele. Demasiado.
Com o tempo, Heathcliff e Catherine desenvolvem uma paixão violenta, mas ela acaba por casar-se com outro homem. Mortificado, Heathcliff desaparece por uns anos, e só volta para se vingar de tudo e de todos. Vinga-se do rival que lhe roubou Catherine, privando-o da felicidade conjugal; vinga-se da irmã deste, humilhando-a para lá de todos os limites; e vinga-se, claro, do irmão adoptivo, que tão mal o tratara. O seu ódio parece não conhecer limites.
Nelly Dean desfia estas patifarias com um grau de detalhe que torna a leitura incómoda. Eu, que é raríssimo ler romances, dei por mim várias vezes a perguntar-me, irritado: ‘Como é que fui meter-me nesta?!’. Lá está, foi tudo culpa do título.
Em relação a Heathcliff, permanece para sempre a dúvida: será ele mau por natureza ou resultará essa maldade do abandono e abusos a que foi sujeito em criança? Brontë nunca é explícita em relação ao passado do rapaz, mas há quem especule que, antes de ir para o Monte dos Vendavais, Heathcliff seria um dos muitos escravos que naquela época abundavam no porto de Liverpool. Ao resgatá-lo do cativeiro, Earnshaw fizera recair sobre a sua própria família uma sucessão de desgraças. Olhem que bela recompensa!