Os brasileiros não se entendem, metade do país não suporta a outra, mas no domingo têm que decidir por quem querem ser governados. Mas mesmo que Jair Bolsonaro seja corrido do palácio do Planalto, o certo é que o bolsonarismo veio para ficar. Se Inácio Lula da Silva vencer a segunda ronda das presidenciais como sugerem as pesquisas – sugerem, dado que só tem uma estreita margem de 6%, segundo o Datafolha, e ninguém esquece o falhanço das sondagens na primeira volta – terá de lidar com um Congresso Nacional dominado por bolsonaristas e pelo Centrão. Podendo ver até estados cruciais ser controlados por governadores que o odeiam.
Talvez em lugar algum isso seja tão notório como em São Paulo. O estado é disputado entre o petista Fernando Haddad, delfim de Lula, e Tarcísio Gomes de Freitas, do Republicanos, apontado como potencial sucessor de Bolsonaro pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, expoente máximo da ala neoliberal do bolsonarismo. Não é de estranhar que no debate entre os dois, esta quinta-feira, se tenha falado mais de política nacional do que do estado São Paulo em si.
No domingo está em jogo o posto de governador de outros onze estados, nomeadamente Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina e Sergipe. Mas São Paulo, com mais de 44 milhões de habitantes, é crucial para a governação do Brasil «por razões económicas, mas também políticas, além do peso demográfico», frisa o sociólogo Elísio Estanque, professor da Universidade de Coimbra, investigador do CES e professor visitante na Universidade Estadual Paulista (UNESP), onde está há seis meses.
E, mesmo que Bolsonaro seja derrotado nestas presidenciais, «num cenário onde o Tarcísio seja eleito como governador, é evidente que ele vai tentar seguir as orientações e as linhas políticas do bolsonarismo».
É que «o bolsonarismo é mais do que o Presidente atual», nota o sociólogo. No cenário de uma vitória de Lula, muito dependerá de qual será a margem. «Se for por uma diferença mínima, é previsível que o movimento pró-Bolsonaro não pare e venha a reagir de diversas formas», explica. «Não se sabe, contudo, qual será a sua consistência e capacidade de combate no futuro», ressalva. Mas talvez esses apoiantes de Bolsonaro – que já indicou que não aceitará uma derrota nas eleições, temendo-se que tal cause violência – possam contar com uns dos seus ao comando do estado de São Paulo. Dispondo de amplos poderes sobre a sua polícia.
Os receios são aumentados pelo enorme crescimento do porte de arma no Brasil, liberalizado por Bolsonaro. «Isso se conjuga com o meu temor, de que se houver um conflito no dia da eleição as polícias militares não estabeleçam a ordem, por estarem conjugadas aos grupos de extrema-direita», avisara Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e antigo procurador do estado de São Paulo, falando ao Nascer do SOL, ainda antes do segundo turno.
Atentado ou homicídio?
O clima político no Brasil está escaldante, mas neste debate entre Tarcísio e Haddad ainda mais, tendo seguranças do bolsonarista sido acusados nesse mesmo dia de abater a tiro um homem desarmado numa visita a uma favela. Há suspeitas que a perícia policial possa ter sido manipulada e sabe-se que um agente das secretas forçou um videógrafo a apagar uma gravação do tiroteio.
O caso é percepcionado de maneira radicalmente diferente por cada metade do Brasil. Do ponto de vista do bolsonarismo, o tiroteio a 17 de outubro foi um «recado do crime», descreveu Tarcísio, que alegou ter sido alvo de um atentado quando visitava um projeto social em Paraisópolis. Do outro lado, houve choque com relatos de testemunhas que contaram ao Intercept que polícias militares à paisana que serviam de segurança de Tarcínio – algo nada habitual em campanha – abriram fogo sobre dois moradores, desarmados, que se aproximaram de moto para insultar o candidato.
Mataram Felipe da Silva Lima, de 28 anos, um pai de três filhos ligado ao tráfico de droga local. Levaram-no para um posto de gasolina, demorando horas a fazer o relatório de ocorrência, sem que se recuperasse nenhuma arma exceto as dos agentes.
Opositores de Bolsonaro não só viram no caso uma ilustração do perigo de uma polícia que dispara primeiro e faz perguntas depois, como se assustaram com a proximidade entre as forças de segurança e o bolsonarismo. descobrindo-se que Tarcísio não só tinha à sua disposição polícias militares, como também um agente da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), Fabrício Cardoso de Paiva, segundo o UOL. Este ordenou a um videógrafo do canal Jovem Pan que apagasse as imagens do tiroteio, avançou a Folha de S. Paulo, tendo depois a campanha de Tarcísio pressionado o canal – um dos poucos media tradicionais vistos como próximos de Bolsonaro – a demitir o videógrafo.
Claro que Haddad não esqueceu o caso durante o debate desta quinta-feira. «Acha que aquele companheiro seu, que é ligado à inteligência, agiu corretamente a constranger um profissional da imprensa a apagar imagens de um evento onde aconteceu um homicídio em circunstâncias que estão sendo apuradas?», questionou o antigo candidato presidencial, substituto de Lula e derrotado por Bolsonaro em 2018. Perguntando se Tarcísio é «a favor de uma polícia mais capacitada para preservação da cena do crime».
Já Tarcísio lamentou o «sensacionalismo barato» do petista. «É muito fácil julgar uma pessoa que está lá sob forte emoção, agiu de boa-fé», continuou o candidato bolsonarista. Que até já propôs acabar com as câmaras corporais nos uniformes da polícia de São Paulo, justificando que estas «atrapalham».
Isto apesar deste programa pioneiro – introduzido pelo governador João Dória, um dos rostos da direita tradicional brasileira – ser associado a uma redução de quase dois terços na resistência às detenções, assim como uma quebra em mais de metade no número de mortos em confrontos com a polícia. Melhorando a reputação da polícia militar de São Paulo, que era conhecida como das mais sanguinárias corporações do Brasil, já desde os tempos da ditadura.
Ainda assim, a expectativa é que Haddad saia derrotado. Por mais que tente ligar Tarcínio à brutalidade policial, que lembre que este carioca apenas começou a morar no estado há uns seis meses – troçando do rival no debate por dizer biscoito, como se diz no Rio de Janeiro, não bolacha – ou saliente o papel do bolsonarista na resposta do Governo à pandemia, enquanto ministro da Infraestrutura.
A derrota de Haddad não é certa, dado o petista estar apenas 3% atrás do adversário, segundo uma sondagem do Ipec, com margem de erro de dois pontos. No entanto, o resultado em São Paulo, seja qual for, terá impacto na política nacional. Basta recordar como a oposição de governadores limitou Bolsonaro, conseguindo até impor confinamentos, mesmo face à oposição do Presidente.
É algo que mostra o poder que os governos estaduais podem ter na vida dos brasileiros. E «os problemas sociais na metrópole de São Paulo são impressionantes, a todos os níveis. E isso reflete-se nos transportes, no ambiente na cidade, na economia», assegura Elísio Estanque.