Nasceu aqui. Não aqui mesmo, mesmo, Guayaquil central onde estou, sobre a linha do Equador, feliz por reencontrar-me com Scolari, Luiz com Z e Felipe com E, um daqueles amigos profundamente fraternos que sabe sobre os labirintos da ternura e uma das pessoas com as quais foi sempre tão fácil trabalhar com alegria. Não aqui, dizia, mas em Ancón, uma paróquia da região de Santa Helena, apenas uns quilómetros mais a norte onde, em 1912, os ingleses se instalaram numa febre súbita de petróleo, criando a Ecuadorian Oilfields Limited, atraindo gente de toda a parte para o seu devaneio de riqueza, chamando os campesinos para que deixassem de sujar as mãos de terra e passassem a tê-las sempre escorregadias de óleo, o cheiro intenso multiplicado com o calor bruto, a humidades que escorre pelas folhas dos plátanos, o suor dos pobres que é diferente de todos os outros, barracas de madeira e de zinco encostadas às ladeiras, cada vez mais gente, cada vez mais enganos e frustrações empilhados à sombra das palmeiras que iam em fileiras desacertadas até às margens castanhas escuras do rio Guaya onde surgiu, a pouco e pouco, o povoado de Guayaquil, estendendo-se a caminho do sul, é sempre para sul que caminha a tristeza.
Spencer é nome de inglês, com estudos em Oxford ou apenas um engenheiro sem engenho emigrado para a Jamaica para trabalhar na instalação de cabos telefónicos, pouco importa o plebeísmo do apelido se um dia vier a tornar-se imorredoiro, inesquecível. A mãe de Alberto Pedro era América, América Herrera, de Ancón, para onde mr. Spencer se mudou depois de se cansar de beber rum na Jamaica, satisfazendo-se de corpos calipígios de mulheres escuras como o petróleo que brotava do solo abençoado de Santa Helena. América Spencer teve um filho que ficou Spencer Herrera. Todo o povo veio a conhecê-lo só por Spencer, para muitos o Cabeza Mágica, melhor jogador equatoriano de todos os tempos, avançado com pacto feito com o golo, com jura de sangue feita com a bola, impiedoso para com todos os guarda-redes, ainda por cima quando se erguia lá no alto das grande-áreas de braços abertos como asas que um Deus qualquer se tivesse esquecido de acabar mas que o faziam voar na mesma, amplo e magnífico, supremo e imperscrutável, a baliza na frente dos olhos, sempre na frente dos olhos, um brilho por detrás dele em forma de sol acabado de nascer, cegando todos em seu redor à medida que as suas cabeçadas francas e os seus pontapés elásticos se formavam em crisálidas coloridas de festa efusiva e colectiva da multidão que gritava a sua gratidão para com o filho de Dona América e do señor Spencer que trocará o rum pelas cervezas dos paradores.
Alberto Spencer foi um dos grandes avançados sul-americanos dos anos 60 e 70. Jogou pelo Evereste, do Equador, mas a sua transferência para o Uruguai e para o Peñarol transformou a sua simples realidade de filho de um inglês borracho e de uma equatoriana de ancas de parideira na lenda do homem que privava com os deuses do futebol e recebia deles a oferenda inopinada dos golos inimitáveis. Alberto foi um atleta formidável e até Pelé se deixou espantar pelas suas impressionantes qualidades físicas. Depois do futebol quis continuar em Montevidéu e foi designado cônsul do Equador no Uruguai. De repente, tão de repente como muitos dos seus golos, o coração falhou-lhe. Estava longe de casa, em Cleveland, nos Estados Unidos, e o tremor cardíaco que lhe abalou o peito não deu lugar a resposta. Guayaquil abriu os braços para o Cabeza Mágica. Um avião aterrou aqui ao lado, no aeroporto José Joaquim de Olmedo, e uma urna aberta andou pelas ruas da cidade para que o povo ficasse definitivamente com a certeza de que Spencer era apenas um homem como os outros. Deitado, imóvel, transportado em ombros, havia ainda quem acreditasse que pudesse regressar da morte e desatasse a marcar golos por entre a multidão.
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