No último artigo que escrevi sobre as eleições brasileiras, disse que o resultado da 2.ª volta era imprevisível.
Tratava-se de uma opinião arriscada: na 1.ª volta Lula tinha vencido Bolsonaro por 5 pontos e os candidatos derrotados tinham-lhe dado o seu apoio.
A vitória de Lula da Silva parecia garantida.
Mas as eleições não são exercícios de matemática – e Lula ganhou por menos de 2%.
Ou seja, bastava 1 % dos eleitores terem votado ao contrário para Bolsonaro vencer.
Alguns comentadores disseram que estas eleições foram uma disputa entre a democracia (Lula) e o autoritarismo (Bolsonaro).
Ora, não percebo como se pode fazer uma afirmação destas.
Há quatro anos, quando Bolsonaro era um ilustre desconhecido e foi eleito, ainda admito que se dissesse isso.
Mas depois de quatro anos de bolsonarismo, em que não houve violações da Constituição, em que a democracia funcionou, em que foi possível Lula sair da prisão e candidatar-se à presidência, como é possível dizer que a vitória de Bolsonaro faria perigar o regime democrático?
Este simples exemplo mostra até que ponto a comunicação social e a maioria dos comentadores tomaram claramente partido nesta disputa, não primaram pela isenção, puxaram por Lula esquecendo os crimes que cometeu, ridicularizaram Bolsonaro.
Foram eles que não se comportaram de forma democrática e independente.
Continua a existir hoje a ideia de que a esquerda é tendencialmente democrática e a direita é autoritária.
Ora, esta ideia é profundamente falsa.
A História desmente-a cabalmente.
A esquerda e a direita são democráticas ou autoritárias consoante a situação em que se encontram.
Não falando do nazismo e do comunismo, e dos exemplos bem conhecidos de Hitler e Estaline, que sob ideologias supostamente opostas levaram a cabo extermínios em massa, a única conclusão que a História permite tirar é esta: quem clama pela democracia é quem está na mó de baixo.
No tempo da Monarquia, os republicanos acusavam o regime monárquico de autoritarismo e clamavam por uma República verdadeiramente democrática.
No tempo da República, a situação inverteu-se: perante as perseguições sofridas, eram os monárquicos a gritar pela democracia.
No tempo do Estado Novo, os comunistas, perseguidos pela polícia, integravam a ‘oposição democrática’.
Mas, nos países em que os partidos comunistas subiram ao poder, eram os liberais a suspirar pela democracia.
Quem quer a democracia são sempre os que estão na mó de baixo; para quem está no poder, é óbvio que o excesso de liberdade não interessa.
É pois completamente abusivo dizer que a esquerda é mais democrática do que a direita ou vice-versa.
A História não o consente.
A guerra da Ucrânia veio lançar uma nova reflexão sobre este problema.
Putin o que é?
É de direita ou de esquerda?
Em princípio é de direita: implantou um regime autoritário, distribuiu a riqueza por uma clique de plutocratas, apoia-se neles e no partido único para se eternizar no poder, cultiva um nacionalismo agressivo, é imperialista, não cumpre as regras do direito internacional.
Isto tudo é factual.
Mas tem o apoio de partidos comunistas pelo mundo fora, a começar pelo chinês e a acabar no português.
O que veem estes partidos na Rússia? Um regime apoiando os pobres contra os ricos, praticando a justiça social, respeitando a liberdade dos cidadãos e a autonomia dos povos vizinhos?
Não – veem exatamente o contrário.
E, no entanto, apoiam Putin e a Rússia.
Porquê?
Por razões geoestratégicas.
A divisão do mundo nos dias de hoje – e ainda muita gente não o percebeu – não tem nada que ver com direita e esquerda, não tem que ver com ideologia: tem que ver com blocos.
Há um bloco chamado ‘Ocidente’, liderado pelos EUA e que inclui a Europa, e um bloco antiocidental, liderado pela China e que inclui a Rússia e países ditos comunistas mas que de comunistas não têm nada, como a Coreia do Norte, Cuba ou a Venezuela.
Felizmente nós estamos no bloco ocidental.
Também tem muitos defeitos, como o império do politicamente correto, o avanço da ideologia de género, uma cultura de morte que pugna pela eutanásia e pelo aborto, a desagregação da família, o primado do dinheiro, etc.
Mas mesmo com todos estes defeitos, o que responderia o leitor se lhe perguntassem: caso tenha de fugir de Portugal, para onde prefere ir: para os EUA ou para a China? Para a Alemanha ou para a Rússia?
Por muitos defeitos que o Ocidente tenha, do lado de cá vemos regimes abertos, livres, onde se respira – e do lado de lá regimes fechados, países dominados por aparelhos de Estado omnipotentes, omnipresentes e opressivos.
Esta diferença, sim, é real. Agora aqueles que dizem que a esquerda é mais democrática do que a direita ou vice-versa, ou que Lula vai trazer a democracia enquanto Bolsonaro queria acabar com ela, ainda não perceberam bem o mundo em que hoje vivem.