GUAYAQUIL – Estamos apenas uns quilómetros a sul do Equador, no país que abraçou o nome dessa linha imaginária, grau zero de latitude, que divide a Terra em duas metades, ponto em que o planeta é mais gordo, abarcando uma circunferência de 40.075 quilómetros.
Diz a ciência que deveria sentir-me mais leve, mas a verdade é que, enquanto caminho pela Avenida Simon Bolívar, um bafo bruto e húmido parece empurrar-me com força os ombros e o pescoço para baixo, o suor cola-me a camisa ao tronco e a expressão tão queiroziana de calor de ananazes faz mais sentido do que nunca, embora as bananeiras estejam por aqui em maioria, até fritas para acompanhar que comida seja.
As águas do rio Guayas são castanhas em todos os seus braços que nos transformam, de repente, quase sem nos apercebermos, em viajantes de umas ilhas para as outras. Guayas, como o chefe dos Pumas que combateu vigorosamente os conquistadores espanhóis até que, convencido da derrota inevitável, matou a mulher Quil e deixou-se afogar em seguida. Guayas e Quil.
Nomes de uma história romântica que tomam conta de uma cidade não tão romântica quanto isso, por vezes mesmo feia nos seus bairros de casas térreas com comedores a surgirem de porta a porta, o cheiro penetrante da carne posta a grelhar em cima de um pedaço de zinco, frango, barrigas de porco, cerveja importada dos Estados Unidos e do México, ou feita aqui mesmo, mais barata, um terço de um dólar a garrafa, igual ao dólar norte-americano mas com cambiantes particulares, moedas de centavos, mais escuras, cunhadas pelo Banco do Ecuador, que vieram para substituir os antigos sucres, moedas que os taxistas exigem porque os seus serviços são baixo-preço, também o que seria deles se não fossem?, com jeito convence-se qualquer condutor a deixar-nos em qualquer lado por apenas dois dólares, as notas atrapalham mais do que ajudam e os ATM recusam-se a fornecer mais de 200 por dia.
Guayaquil pode ter nascido de uma história de amor, mas há sempre alguém que faz má publicidade a certas zonas da cidade que se viu, durante o último fim-de-semana, invadida por brasileiros que vieram um pouco de todo o lado para assistirem à final da Taça dos Libertadores no Estádio Monumental Isidro Romero Carbo disputada por dois clubes brasileiros, o Flamengo e o Athletico Paranaense.
Talvez por isso as fardas estejam mais visíveis, entre polícias e militares, sobretudo nas zonas comerciais – os mall, como chamam, à americana, os centros de lojas variadas em edifícios espelhados – e principalmente na véspera do Halloween em que toda a gente vem para a rua com máscaras de esqueletos, de abóboras recortadas com sorrisos mais ridículos do que macabros, cabeleiras vermelhas, laranjas, verdes e azuis, crianças e adultos numa mistura bacoca de gente que faz questão de passar assim vestida todo o feriado, mesmo que seja possível calcular que cozam lentamente dentro das suas fatiotas de plástico.
Em La Rotonda, Simon Bolívar (que apoiou a revolta do povo de Guayaquil e provocou a independência a 9 de Outubro de 1820) e San Martín, os verdadeiros Libertadores, ficaram eternizados em estátuas. As agências de viagens vendem excursões às Galápagos, numa repetição da expedição de Charles Darwin e com promessa de visão de tartarugas únicas.
As ilhas chamam-se, na realidade, Arquipélago de Colón – a província é que se chama Galápagos – mas Guayaquil também se chama oficialmente Santiago de Guayaquil e ninguém parece importar-se muito com isso. «Beban guayas», aconselha canção do rapper porto-riquenho Dom Omar, o terrível cocktail de sete licores que faz relaxar o corpo e a mente, mas também conduz à violência: «Guaya Guaya/Nena, deja esa dema que el sol ta que quema/Shorty me salió picúa/(Me le) Me le puse duro y la maté en la raya/Nena, deja esa dema que el sol ta que quema/Ponte un traje de baño y vamo’ pa’ la playa…».
E se têm dúvidas de como queima o cérebro perguntem-lhe por que continua assim: «Hoy me corre sol y arena, dos mamis bien buenas/Whiskey con cojones, la música que suena/Sabe a party en piscina con la hija e la vecina/Bebiendo to’ el corillo y smokeando en una esquina».
Nos bufetes do Malecón, nos quiosques de El Salado que nascem como cogumelos no meio dos passeios, as colunas soltam música em gritos e as mulheres sacodem as ancas para os homens que as fixam com o olhar cada vez mais vidrado à medida de que despejam pelas goelas litros de cerveja e o som é, por assim dizer, muito mais equatorial ainda por cima quando cantado por Papa Roncon.
Don Eutimio, catalão
Urdeza é bairro de burguesia alta. É lá que fica a sede de Casal-Catalá, o centro de reunião dos descendentes de catalães que se instalaram em Guayaquil desde os inícios de 1900, depois de terem passado pela dureza da mineração do sal, no Chile, e procuraram esta baía do pacífico para se dedicarem sobretudo à propagação do negócio do entretenimento (circos e teatros) que foi tendo cada vez mais procura à medida que o porto da cidade ganhava importância no transporte de mercadorias para a América do Norte e para a Europa.
O 11 de Setembro é comemorado com ganas. Não essoutro 11 de Setembro de 2001, manchado a sangue, como o foi também o 11 de Setembro de 1973, em Santiago, quando Pinochet subiu ao poder e Allende foi morto pelos aviões dos gringos, mas o 11 de Setembro de todos os anos que é o Dia Nacional da Catalunha.
Don Eutimio Perez era um jovem señor cujos pais tinham vindo de Barcelona. Gente rica, proprietários, comerciantes, fazedores de dinheiro. No dia 1 de Maio de 1925, convidou para o seu palácio, no bairro de Astillero, na Calle de Oro, um grupo de selectos guayaquileños. Gostava de futebol, gostava do seu Barcelona, propôs-lhes criar um outro.
O grupo de amigos era conhecido na cidade por La Gallada de la Modelo, qualquer coisa como Os Valentes do Modelo, outra das zonas da cidade que frequentavam e onde tinham conseguido rasgar um campo de futebol com o mínimo de dignidade, local onde surgiu, depois, o Estádio Modelo. Eutimio era um rapaz autoritário.
Podia estar rodeado da fina-flor da sociedade de Guayaquil de então, mas não deixou em mãos alheias nem o desenho do emblema nem as cores do Barcelona Sporting Club. Depois de um ligeiro período em que jogava de camisola às listas vermelhas e amarelas, como a bandeira catalã, limitou-se pura e simplesmente a adotar o brasão e o equipamento do Futebol Clube de Barcelona, da sua Catalunha natal.
O início da vida do Barcelona do Equador, como é muitas vezes tratado pela imprensa sul-americana, foi idêntico ao de tantos outros clubes em todo o mundo. Eutimio e os seus companheiros podiam ter dinheiro nos bolsos para umas jantaradas e umas garrafas de champanhe, mas eram amadores e jogaram nos torneios organizados pela Asociación de Fútbol del Guayas, defrontando outras equipas da província sem grande destaque durante cerca de década e meia.
Depois, nos anos-40, Guayaquil recebeu a visita de clubes colombianos que já tinham alguma notoriedade internacional, como foram os casos do Deportivo de Cali e de Os Millionarios. Vitórias do Barcelona por 3-1 e 1-0 sobre conjuntos já fortemente profissionalizados serviram para lhe dar uma popularidade tremenda no país, popularidade essa que se prolongou no tempo e se mantém até hoje, fazendo dos Toreros, como passaram a ser alcunhados a partir de certa altura, os maiores do Equador, embora nunca tenham concretizado o sonho de vencer a Libertadores. Ficaram-se por duas presenças na final, em 1990 e 1998.
A façanha do padre basco
Curiosamente, o primeiro estádio a sério do Barcelona, chamou-se George Capwell, nome de um norte-americano que veio para Guayaquil pôr a funcionar a Empresa Eléctrica del Ecuador e que, percebendo que todos os empregados gostavam de futebol, tratou de fundar um clube dentro das instalações, o EMELEC – usando as primeiras letras da empresa – que veio a tornar-se o seu maior rival interno.
Com o extremar dessa rivalidade, o Barcelona foi à procura de outra casa e ergueu o Estádio Modelo – hoje Estádio Modelo Alberto Spencer, em homenagem ao grande herói do futebol equatoriano dos anos-60 que cumpriu uma carreira brilhante como avançado-centro do Peñarol do Uruguai depois de ter defendido a camisa blaugrana do Barcelona – no qual viveu alguns dos anos mais fulgurantes da sua existência.
O Estádio Modelo mantém-se bem conservado mas só serve para jogos menores ou para provas de atletismo, tão pequeno é comparado com o Monumental, que atinge os 60 mil lugares, tendo na sua origem (1986) chegado aos 90 mil. Patrocinado pelo então presidente da República, León Febres Cordero, um adepto doente, e com terreno cedido pelo mayor de Guyaquil, Jaime Nebot, foi baptizado com o nome do presidente do clube Isidro Romero Carbo, que nunca se livrou de acusações duras de receber benefícios do Estado – mais à vista não podiam estar, francamente!, acusações para as quais se marimbou por completo, assumindo a vontade de fazer do Barcelona um dos grandes da América Latina, o que de certa forma aconteceu, embora os adeptos mais saudosistas se fixem num momento histórico, o da vitória de 29 de Outubro de 1971 em Buenos Aires sobre o Estudiantes de La Plata (que ganhara três Libertadores consecutivas e a Taça Intercontinental do ano anterior) numas meias-finais muito estranhas pois os finalistas saíam de dois grupos de três equipas que jogavam umas contra as outras casa e fora.
O Estudiantes voltaria a estar na final, perdida em dois jogos frente ao Nacional de Montevidéu, mas viu-se absolutamente surpreendido pelos equatorianos no jogo inaugural do grupos do qual também fazia parte o Unión Española do Chile. O Barcelona contava com o regresso de Alberto Spencer, já no final de carreira, e com o avançado brasileiro Pepe Paes, além de um basco, Juan Manuel Bazurko, que era padre e viria a tornar-se na grande figura do jogo. Arrogantes como só os argentinos sabem ser, os adeptos do Estudiantes tinham um grito muito particular: «Mozo, traiga otra Copa!». E foi com milhares de gargantas provocando essa afronta que os jogadores de Guyaquil foram recebidos na altura em que se tornaram a primeira equipa do Equador a estar a um passo da final.
«¿Fuimos los guayaquileños los que bautizamos como hazaña la victoria del 29 de abril de 1971 en un alarde de exageración y tropicalismo? Ese ha sido un argumento usado por los enemigos de la historia y de los logros de los equipos de esta ciudad», escreveu o jornalista Ricardo Vasconcellos Rosado, um dos mais respeitados comentadores de futebol da América do Sul. De alguma forma em resposta à maioria da imprensa argentina que desvalorizou a façanha do Barcelona, sobretudo quando, na resposta, o Estudiantes veio a Guayaquil obter o mesmo resultado e anulando o da primeira mão. Mas os equatorianos tinham motivos para se orgulharem desse momento que foi um dos mais brilhantes da história do Barcelona.
Livre da sotaina, o padre Bazurko viu-se elevado a um altar: «La noche que Bazurko tocó el cielo! El párroco de San Camilo eludió al tosco defensa central Ramón Aguirre Suárez para colocar el balón en un sitio imposible ante el inútil bloqueo del Bambi Flores, arquero platense.¿Algún grito perdurará en la memoria más que aquel de Arístides Castro en Atalaya: “¡Benditos sean los botines del cura Bazurko!”». Sim, bendito orgulho tropicalista que fez tremer Guayaquil como se fosse um terramoto. E, no fundo, este Barcelona já conseguiu tornar-se independente do outro por muito que tenha custado a Eutimio Perez. Ou à sua memória…