Não lhe bastará existir

Gouveia e Melo é alguém que, pura e simplesmente, as pessoas desconhecem para lá da imagem.

por João Rodrigues
Advogado, Vereador do Urbanismo e Inovação da CM de Braga

De António Ramalho Eanes a Marcelo Rebelo de Sousa, o Portugal democrático contou com cinco Presidentes da República eleitos. Cinco homens diferentes e de cujos percursos, certamente, nem todos faremos a mesma avaliação. Discordamos na avaliação daquilo que fizeram antes de assumirem o cargo; discordamos na avaliação daquilo que fizeram durante o exercício do cargo; discordamos, até, na avaliação daquilo que fizeram após abandonarem o cargo.

Não discordamos, no entanto, que todos os portugueses os conheciam minimamente no momento em que se atreveram a demonstrar que estariam disponíveis para ocuparem o lugar mais alto da hierarquia político-constitucional portuguesa.

Sabíamos o que pensavam. Sabíamos do que seriam capazes. E, sobretudo, sabíamos aquilo que cada um daqueles homens representava. Mesmo António Ramalho Eanes, na altura o que hoje consideramos, até para efeitos estatísticos, um jovem, tinha em si um vasto currículo de intervenção política, preponderante no caminho que o país levou no pós-Revolução.

Parece, no entanto, que tem vindo a surgir um movimento que quer contrariar esta realidade – a certeza, mesmo que apenas presente no nosso subconsciente, de que queremos ter como Presidente da República alguém que sabemos que características demonstrou ao longo de um percurso de vida que havemos de conhecer minimamente e que nos indiciará um mínimo de qualidades que imporá no exercício do cargo.

Ora, a ideia que tem vindo a surgir nalguns meios – e nas sondagens, nas sondagens! – de que o responsável pela operação logística de distribuição das vacinas contra a covid-19 tem uma boa chance de chegar a Presidente da República deve deixar-nos algumas interrogações. Interrogações, de resto, a que só o próprio poderá dar resposta.

Ninguém sabe o que pensa Gouveia e Melo. Certamente respeitável e merecedor do devido louvor pela operação que chefiou, Gouveia e Melo é alguém que, pura e simplesmente, as pessoas desconhecem para lá da imagem. Ninguém sabe o que Gouveia e Melo pensa do país. Ninguém sabe o que Gouveia e Melo pensa do sistema democrático em que vivemos. Ninguém sabe o que Gouveia e Melo pensa dos poderes que a Constituição atribui ao Presidente da República. Ninguém sabe para onde é que Gouveia e Melo quer ir. Ninguém sabe se Gouveia e Melo é de esquerda ou se é de direita. Ninguém sabe se será de centro. Ninguém sabe se até será dos que dizem que não são de lado nenhum.

Depois, e do pouco que sabemos, julgo pertinente recordarmos dois momentos que parecem ter sido um.

Gouveia e Melo deu, até hoje, duas grandes entrevistas: uma, enquanto ainda liderava a operação logística da qual foi incumbido; a outra, concedeu-a poucos dias depois de deixar ‘a missão’.

Nas duas, a mesma mensagem: estava disponível para tudo, dizia por detrás da barba branca, até porque o futuro, esse, ‘só a Deus pertence’, ao mesmo tempo que prometia que, com o tempo, “muita coisa pode acontecer”. Ao mesmo tempo que dizia tudo isto, teve ainda tempo para se queixar. Queixou-se por lhe estarem ‘sempre a fazer a mesma pergunta’, sendo certo que ele, mais do que não lhes ter respondido, sempre adoçou o caminho para que as continuassem a fazer.

Ora, correndo o risco de entrar numa discussão igual à pescada de rabo na boca, em que todas as hipóteses são más, Gouveia e Melo, com estas declarações, ou revela ser precipitado, aproveitando a primeira deixa para marcar a ideia vã de que ‘quer ser alguma coisa’, revelando, ao mesmo tempo, uma impreparação gritante; ou revela uma ambição desmedida e incauta, atirando-se à primeira oportunidade como se não houvesse amanhã; ou, mais ainda, queixando-se de que lhe estão sempre a fazer a mesma pergunta e respondendo com o que antecede – como quem pede mais –, trata o assunto com uma leveza própria de alguém que demonstra uma excitação nada condicente com a condição que, de forma manifesta, quer para si próprio. Tudo isto, sem nunca explicar por que conjunto de razões seria esse o bom caminho – pelo contrário, e porque esse conjunto de razões parece ser o menos relevante, quer é que o escolham, independentemente dos custosos porquês.

Assim, e se é verdade que praticamente nada sabemos de Gouveia e Melo, não é menos verdade que, do pouco que o próprio teve a oportunidade de demonstrar, quando aproveitou a oportunidade para falar, o que passámos a saber também não abona muito em seu benefício. Precipitação, ambição numa dose que claramente não é a certa (ou até mesmo a incapacidade de a esconder) e a incapacidade de tornar óbvios motivos objetivos que o tornem opção, não podem abonar a favor de ninguém.

Algo vai mal. Não por se tratar de um militar, como já ouvi alguns dizerem. Não por alguns terem dificuldade em vislumbrar alternativa. Algo vai mal, antes, porque, pura e simplesmente, não sabemos sequer quem é o homem que as sondagens colocam como favorito a ocupar o lugar cimeiro do Estado.