Como hipotecar o futuro…

O episódio que envolveu Miguel Alves, nomeado há menos de dois meses para ‘ajudante’ do primeiro-ministro, é mais uma história de contornos opacos

Num país cuja opinião pública é pouco exigente perante a notória falta de transparência de alguns atores políticos, não admira que haja comportamentos desviantes cultivados com zelo, que, quando descobertos, ficam em estágio na ‘arca do sótão’ para não incomodarem a oligarquia dominante. 

Mesmo assim, é raro assistir-se a uma convergência de reações tão abrangente, como a que se verificou em torno do ex-secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves, antes de ser forçado a demitir-se, acusado pelo Ministério Público. 

Num ápice, passou de figura secundária a protagonista mediático pelas piores razões, forçando, primeiro, António Costa a sair em seu socorro, ao reiterar-lhe a confiança política, algo que ninguém percebeu, nem entre correligionários.

Os sarilhos em que o ex-autarca se meteu, enquanto presidente do Município de Caminha, converteu-o num ativo tóxico indefensável. 

O primeiro-ministro anda em maré de azar. Em meio ano de Governo, teve Marta Temido a ‘bater com a porta’, cansada de ser ministra da Saúde, depois de endeusada no último congresso socialista.

E agora foi o caso deste seu ‘braço direito’ que, somado a outros pendentes, veio reforçar a sensação de que ou António Costa ignora o perfil de quem convida, ou sabe tudo mas finge que não sabe. Em qualquer das hipóteses, venha o diabo e escolha…

O episódio que envolveu Miguel Alves, nomeado há menos de dois meses para ‘ajudante’ do primeiro-ministro, é mais uma história de contornos opacos.

Primeiro, cogita-se como é que um autarca experiente – e com uma destacada ‘folha de serviços’ no PS – caiu na esparrela de assinar um contrato de financiamento a um empresário local, por conta de arrendamentos para um Centro de Exposições fantasma, que não saiu do papel.

Tudo continuaria na ‘paz dos anjos’ se não fosse uma investigação jornalística que deixou Miguel Alves, primeiro em silêncio, e, mais tarde, enrolado em explicações toscas e mal-amanhadas, tomando os portugueses por tolos. 
Por estranho que pareça, o ex-autarca ainda teimou em ‘bater na tecla’ da autovitimização, alegando que o seu caso só existiu, por ser adjunto do primeiro-ministro e por haver «preconceito» em relação a quem está fora da «corte» mediática de Lisboa. 

A tese, embora bizarra, teve, ao menos, a virtude de provocar uma invulgar sintonia de posições, portas adentro da casa socialista, com a ex-ministra Alexandra Leitão, a deputada Isabel Moreira, e, até, João Cravinho, a apontarem a porta de saída a Miguel Alves, empurrado, ou pelo seu pé. 

Demorou. Baralhou até onde pode, mas soçobrou como parecia inevitável. Convenhamos, porém, que a sua resistência não foi original. 

Antes dele, já o ministro Pedro Nuno Santos quis decidir sobre o novo aeroporto de Lisboa, ‘atropelando’ o primeiro-ministro, ausente do país. E, apesar disso, não se demitiu nem recebeu ‘ordem de marcha’, embora se tivesse sujeitado a um humilhante ‘ato de contrição’ em público.

Soube-se, depois, que, além do passo em falso no aeroporto, o governante ‘aterrou’, também, na pista das incompatibilidades, ao ser conhecido que ‘as empresas em que Pedro Nuno Santos é sócio com o pai’, receberam ‘quase 3 milhões de euros em fundos’, no âmbito das verbas do PRR. Uma bagatela. 

O ministro foi ao Parlamento dizer que «agiu de boa fé», e que «estive três anos a achar que estava bem». No mínimo, faltou-lhe ler a lei. Miguel Alves também sai «de consciência tranquila», e «convicto» da legalidade dos seus atos em Caminha… 

Já a ministra Ana Abrunhosa, igualmente na berlinda no capítulo das incompatibilidades, devido a negócios familiares – e muito sofrida, de «coração apertado», com os azares de Pedro Nuno Santos – estranhou ser notícia, pelo facto de uma empresa onde o marido é sócio, ter sido beneficiária do «apoio de fundos europeus».

É certo que lhe cabe a tutela de entidades responsáveis pela gestão dos fundos comunitários. Mas que importa? Nada que se confunda com eventuais conflitos de interesses… 

Ciente disso, Ana Abrunhosa ainda veio defender que qualquer mudança na lei para impedir que familiares recorram a tais fundos seria «supressão de direitos». Está no seu direito…

Mariana Vieira da Silva, outro ‘erro de casting’, tentou, por seu lado, justificar, com candura, a contratação de um ‘boy’ socialista, para o seu gabinete, recém-saído da Faculdade, sem a menor experiência profissional, mas já com honras de vencimento de topo. E a ministra ainda teve o topete de declarar, sem se rir, que a filiação no PS «nunca foi critério de recrutamento». Brinca connosco.

Chamado a acudir a tantos fogos, Costa parece assaz perdido, irritadiço, desgastado, uma sombra do otimista ‘irritante’.

O país socialista governa-se, dividido entre acautelar… e hipotecar o futuro.