O anúncio da retirada dos russos de Kherson foi feito através da divulgação de um vídeo que mais parecia uma encenação teatral.
Nas imagens, via-se o comandante das forças russas na Ucrânia, Sergei Surovikin, dizer ao ministro da Defesa, Sergei Shoigu, que tinha uma proposta a fazer-lhe: a «difícil decisão» de recuar em Kherson para a margem esquerda do rio Dnipro; caso contrário, perante o avanço das forças ucranianas, haveria o risco de o exército russo sofrer muitas baixas.
Com o rosto inexpressivo que é apanágio dos responsáveis russos – que mais parecem máquinas a falar do que pessoas de carne e osso -, o ministro da Defesa respondeu que a sua principal preocupação é poupar vidas humanas e ordenou: «Comecem a retirar as tropas».
Como interpretar esta farsa? Com que intenção os russos filmaram esta cena e divulgaram este vídeo?
Nesta altura, não posso deixar de recordar o que ouvi a certas pessoas no início da invasão. Raquel Varela, que reclama constantemente a sua condição de historiadora – para dar um peso ‘histórico’ às suas opiniões circunstanciais e muito duvidosas -, atacou Zelensky e acusou-o de dar ordens criminosas. Ao mandar os ucranianos resistir aos russos, só iria provocar mais sangue e mais mortes, pois a derrota ucraniana era «inevitável».
Mas não foi só ela a defender a ideia de que não valia a pena a Ucrânia resistir.
Pela mesma ocasião, ouvi o general Carlos Branco – que pela sua condição de militar se supõe dominar estas questões – afirmar com toda a convicção que a tomada de Kiev era uma questão de dias. «Ou os ucranianos se rendem ou o exército russo arrasa a cidade. Sobre isso não há a mínima dúvida» – garantiu.
Mas se, nessa altura, aquelas considerações me pareceram precipitadas ou mesmo falhas de lógica, hoje encontro-me na posição contrária: não acredito na facilidade com que os russos abandonaram Kherson, aceitando a derrota militar. Há por detrás disto – e da farsa do vídeo divulgado, que acaba por ser ingénuo no seu óbvio primarismo – uma qualquer estratégia que está por saber.
Perante os insucessos no Sul e no Leste da Ucrânia, não é crível que os russos tentem de novo esta via. A resistência ucraniana está muito enraizada, as tropas russas sofreram muitas baixas e perdas de material, e já não terão condições militares e psicológicas para uma conquista de território palmo a palmo, como fizeram no início das hostilidades.
A única maneira de ainda conseguirem algo desta guerra é uma operação totalmente diferente: um raide-surpresa que possibilite a mudança do poder em Kiev.
Um ataque à capital, com a morte, a prisão ou a fuga de Zelensky, alteraria por completo o sentido da guerra. Sem cabeça, a resistência ucraniana claudicaria. Um novo governo pró-russo em Kiev, a dar ordens ao país inteiro, acabaria por impor uma nova situação. Haveria resistência, mas numa guerra de guerrilha e não em ações militares organizadas.
Julgo que é este o grande perigo que paira sobre a Ucrânia e não um ataque nuclear. Os russos nunca o farão. Quer pela reação que provocaria por parte dos adversários, sobretudo os EUA, que estão muito empenhados no conflito, mas também pela posição da China. Xi Jinping vai apoiando Putin mas não quer perder as pontes com o Ocidente – e nunca poderia aceitar uma ação dessas.
Aliás, a chantagem nuclear é algo a que ninguém pode ceder. Se um povo baixasse os braços perante a ameaça de um ataque nuclear doutro país, instalar-se-ia no mundo a lei da selva: as potências nucleares poderiam começar a comportar-se como vulgares gangsters, anexando territórios, mudando governos, etc., a seu bel-prazer, pois os inimigos inibir-se-iam de resistir.
Os russos só usariam o nuclear se fossem atacados dentro do seu território, em situação defensiva, e nunca em posição ofensiva. Essa ameaça não é para levar a sério.
Os próximos passos desta guerra, que parece agora inclinar-se a favor da Ucrânia, são para mim uma enorme incógnita. A Rússia não vai sair da Ucrânia sem tentar mais nada. Aliás, para que serviriam os 300 mil homens que mobilizou e está a treinar? Se a intenção fosse sair, para que teria servido este reforço de tropas e material?
É claro que tudo o que atrás ficou escrito já foi ponderado pelos ucranianos e seus aliados. Eles sabem que os russos têm jogo escondido e que este recuo é ‘para inglês ver’. Embora não seja especialista militar – não podendo comparar-me com os oficiais que vão diariamente à TV -, a lógica diz-me que uma nova ofensiva clássica por parte dos russos, como sucedeu no início do conflito, está fora de causa. O que poderemos esperar é uma ação-surpresa que, de um momento para o outro, inverta o sentido da guerra.