A polémica sobre a ida de Marcelo Rebelo de Sousa ao Qatar chegou à Assembleia da República.
No cumprimento de uma formalidade que vem do tempo da Monarquia – a obrigatoriedade de o Parlamento autorizar a saída do país do chefe do Estado –, alguns deputados aproveitaram a ocasião para questionar a deslocação de Marcelo a um país que não respeita os direitos humanos para assistir a um jogo de futebol.
A questão, embora aproveitada de forma oportunista, tinha alguma razão de ser.
Já irei aos direitos humanos; mas esta prática, que se institucionalizou, de os políticos andarem atrelados ao futebol, é muitíssimo discutível.
Dizia-se que Salazar usava o futebol para entreter o povo e o fazer esquecer a ditadura e os seus problemas.
Mas alguns dos que o criticavam nessa época são hoje os primeiros a ir aos estádios e promover a promiscuidade entre futebol e política.
Vejam-se os casos de António Costa, Augusto Santos Silva, Ferro Rodrigues, etc.; não falo de Marcelo Rebelo de Sousa, pois este não militava propriamente na oposição.
A osmose entre política e futebol instalou-se. E o campeonato do mundo é o palco ideal para todas as manifestações.
Enquanto uns políticos se servem do futebol para se promoverem, outros utilizam-no para contestar isto e aquilo, instrumentalizando-o doutra maneira.
E um pouco por toda a parte isto acontece – longe do Qatar ou no interior dele, até dentro das quatro linhas.
Os jogadores do Irão não cantaram o hino do país em sinal de protesto contra a violência do regime.
Os jogadores de Inglaterra (numa insólita prática que vem de trás) ajoelham-se antes de cada jogo, num pedido de desculpas às vítimas do racismo.
Os jogadores da Alemanha taparam a boca por não poderem usar as braçadeiras arco-íris símbolo do movimento LGBT, e a Dinamarca ameaça sair da FIFA pelo mesmo motivo.
As organizações de direitos humanos protestam contra as condições de quase escravatura em que trabalharam os construtores dos estádios, insurgem-se contra as limitações à liberdade e também referem a perseguição aos homossexuais.
Pela primeira vez veem-se militantes LGBT interessar-se pelo futebol.
Tudo é pretexto para aparecer e dar nas vistas.
Uns por umas razões, outros por outras, uns com razão, outros sem razão nenhuma.
Muitos parecem ter acordado agora para o problema dos direitos humanos no Qatar – que é extensivo a todo o mundo muçulmano e não abrange apenas a liberdade de expressão e os direitos dos homossexuais mas também (e talvez sobretudo) os direitos das mulheres.
Ora, isto é sabido há séculos; e há mais de uma década (desde dezembro de 2010) que é conhecido o facto de o campeonato do mundo se ir disputar num país muçulmano.
Independentemente do que se pense de todos estes aproveitamentos e manifestações, uma conclusão é possível: a política tomou conta do futebol.
Durante muito tempo, o futebol conseguiu manter-se à margem das lutas políticas; era um território neutro, onde a política ficava à porta, onde adeptos de todos os partidos e sem partido, fascistas, liberais e comunistas, se sentavam lado a lado nas bancadas e festejavam em uníssono os golos das suas equipas.
Hoje, o futebol começa a estar minado pela política.
Começa a ser um campo de batalha onde se discute o racismo, as liberdades, a guerra, as questões LGBT, etc.
As seleções são afastadas das competições por razões políticas, como aconteceu com a Rússia.
E cada vez será mais assim. Trata-se de um fenómeno irreversível.
Como o futebol é a atividade com mais adeptos em todo o mundo, que concita mais as atenções, que chama mais os media, cada vez mais os políticos estarão nele presentes – e as organizações políticas o tentarão aproveitar como palco para a sua propaganda.
Este campeonato do mundo de futebol do Qatar ficará na História como um momento decisivo em que política e futebol se misturaram e surgiram associados aos olhos de todos.
Mas isto, evidentemente, vai dar cabo do futebol.
No Qatar, iniciou-se o seu funeral.
A partir do momento em que deixa de ser um jogo e se torna um campo de batalha político-ideológico, o futebol acabou.