Tem causado grande escândalo uma reportagem assinada por um consórcio de jornalistas, designado Setenta e Quatro, que andou a pesquisar durante meses nas redes sociais e descobriu trocas de mensagens entre agentes da PSP ou militares da GNR de caráter racista, xenófobo e homofóbico.
O escândalo tem razão de ser: algumas mensagens são chocantes. Mas devo confessar que nunca tive grande simpatia por pessoas como Rui Pinto, Assange, etc., que andam no espaço virtual a devassar mensagens e documentos privados com o objetivo de denunciar publicamente os seus autores.
Num Estado democrático, todos os cidadãos têm direito à sua privacidade. As escutas telefónicas ou entradas em grupos fechados de redes como o Facebook só podem ser executadas com ordem judicial. Portanto, o que aqueles jornalistas fizeram foi objetivamente um crime.
Argumentar-se-á que foi um crime com ‘boas intenções’, visando prestar um serviço público. Um crime cometido por uma ‘boa causa’. Ora, esse argumento não é válido. A partir do momento em que se aceite que pessoas ou grupos vasculhem sem controlo as redes sociais, ou ouçam as conversas privadas, todas as arbitrariedades são possíveis.
Multiplicar-se-ão as chantagens, os ataques a alvos específicos ou as investigações politicamente orientadas – como esta, aliás.
Um dos jornalistas mais conhecidos deste consórcio é Pedro Coelho, que fez reportagens de denúncia do Chega em pleno período eleitoral, o que é deontologicamente inapropriado. Pedro Coelho acha-se um combatente antifascista, um justiceiro, e considera que tudo o que faça nesse sentido é legítimo. Ora, não é.
Podendo este trabalho ser honesto, tem uma orientação clara: denunciar a infiltração de organizações de extrema-direita nas forças policiais. De facto, as referências à extrema-direita são constantes, mas não existe uma única alusão a infiltrações da extrema-esquerda. E sabemos que as há.
As referências à simpatia de agentes da PSP e da GNR pelo partido Chega ou por Oliveira Salazar são abundantes, mas não há uma única alusão a simpatias pelo PCP, pelo BE, por Lenine ou por Estaline. E na reportagem são constantemente usados os termos «racista», «xenófobo» e «homofóbico», que remetem para o vocabulário da esquerda.
Assim, estamos no limiar daquilo que deixa de ser jornalismo para ser propaganda. Isto é, daquilo que faz parte da guerra política, atacando um setor do leque político contra outro.
Mas vamos ao que interessa. A troca de mensagens racistas, xenófobas etc. entre polícias deve conduzir à sua expulsão?
Algumas frases que li são deploráveis, execráveis, mesmo. Mas as redes sociais estão cheias de opiniões e frases execráveis. E os polícias não são feitos por encomenda. São pessoas como as outras, recrutadas nesta sociedade, com as suas virtudes e defeitos. Com a agravante de atuarem muitas vezes em circunstâncias-limite, em bairros e zonas problemáticas, o que potenciará reações mais extremistas.
A somar a isto, as forças da ordem são muitas vezes desconsideradas e são efetivamente mal pagas. Não têm o reconhecimento que acham que deveriam ter por parte do Estado, em termos sociais e materiais, o que explicará também algumas atitudes de revolta.
O cerne da questão, porém, é este: um cidadão pode ser perseguido pelas suas opiniões? E a minha resposta é: não pode.
Há que distinguir entre ações e opiniões. Cada um pode ter as opiniões que quiser, e ninguém tem nada com isso. O problema é quando passa das opiniões para as ações criminosas. Um polícia que seja bom profissional, que cumpra as orientações das chefias, que respeite as normas de conduta, não tem que ser perseguido pelas suas opiniões.
Ser simpatizante do Chega ou admirador de Salazar é um crime? O Chega é um partido legal, com representação parlamentar, e Salazar foi considerado «o maior português de todos os tempos» num famoso trabalho da RTP. É estranho que algumas centenas de polícias, entre dezenas de milhares, simpatizem com o Chega e admirem Salazar? Estranho seria o contrário.
Dirão alguns – e a reportagem passa essa ideia – que esses agentes deveriam ser afastados do serviço para prevenir males maiores. Ou seja: ainda não cometeram crimes, mas podem vir a cometer. Sucede que este é o argumento de todos os regimes autoritários. Salazar perseguia os comunistas para evitar ‘males maiores’. Podiam não ter cometido qualquer crime, mas eram potencialmente perigosos pelas suas opiniões e, como tal, deveriam ser presos ou afastados da administração pública. Perseguir pessoas por delito de opinião abre a porta a todos os atentados à liberdade.
Aliás, quando um juiz autoriza uma escuta telefónica ou uma violação de correspondência não é para apurar as opiniões do suspeito – é para ajudar ao apuramento de eventuais atos criminosos que tenha cometido. O facto de uma pessoa ter determinadas opiniões não faz dela um delinquente.
Acho muito bem que qualquer ação criminosa praticada por um agente da autoridade seja exemplarmente punida, até com uma pena acrescida. Os polícias existem para fazer cumprir a lei e não para a subverter. E o facto de usarem armas dá-lhes maiores responsabilidades.
Mas perseguir polícias com base nas suas opiniões é altamente discutível. E aplaudir a devassa das redes sociais, seja de polícias ou de quaisquer outros cidadãos, sob o pretexto de ameaças «fascistas» ou outras, não é aceitável.
Qualquer dia estamos a fazer justiça à margem da lei pelas nossas próprias mãos.