Da rés pública – Coisa do povo

A politização da gestão da coisa pública acarretou a entrada de estranhos nas organizações de saúde e não só.

Por Jaime Dias Ferreira, enfermeiro gestor

Sou enfermeiro desde 1978 o que significa ter assistido à fundação do SNS e sua evolução.

Nos primórdios do SNS o ensino das profissões médicas assentava apenas e só nos seguintes princípios: conhecer o doente, palpar o doente, saber o que eram os sinais de Celcius, escrever uma história (anamnese) fazer um diagnóstico. Depois passou para, perguntar o que têm, pedir análises, imagiologia e esperar.

De facto o que mudou foi o ensino da medicina, tendo como consequência o abastardamento dos pedidos de MCD (meios complementares de diagnóstico) que em 2021 custaram 714 milhões de euros, que podemos considerar um valor brutal. Mas isso apenas e só, está ligado às variáveis seguintes: formação e gestão.

Se em relação à formação estamos esclarecidos, quanto à gestão deveríamos estar, porque a politização da gestão da coisa pública é o maior crime que os partidos cometeram contra a democracia e o estado de direito, com particular enfase no partido socialista.

A politização da gestão da coisa pública acarretou a entrada de estranhos nas organizações de saúde e não só. Porque em consequência, admitiram correligionários para múltiplos lugares de quadro, sem o crivo das políticas de admissão, criando-se assim uma linha de controlo sobre a coisa pública, sempre ao sabor e saber do partido e não do interesse público.

Por outro lado, a inoculação na opinião pública que a gestão só é viável quando todos pertencem ao mesmo partido, destruiu a carreira dos administradores hospitalares que funcionavam como travão aos desvarios dos partidos do poder, subordinando-os ao poder político do momento. Ora, este tipo de comportamento caciqueiro, levou a que diferentes lugares fossem ocupados pelos caciques políticos em detrimento dos gestores de carreira, levando ao estado em que estamos; mais despesa, menos saúde.

Por exemplo em 2021, 11,2 do PIB mais 0,7 que em 2020. Mas retirando a pandemia, já em 2018 tínhamos 9,4 e em 2019, 9,5 do PIB. Mas um dado que mostra a qualidade da gestão está nas taxas de ocupação dos hospitais, que nunca atingem 80% da capacidade disponível e ainda, os doentes tratados, consultados ou atendidos.

Eu trabalho numa organização, Centro Hospitalar Universitário do Algarve a seguir designado por CHUA, onde este tipo de políticas e decisões levam ao seguinte: o actual CA – Conselho de Administração – teve ao seu dispor mais de 100 milhões de euros que as anteriores gestões e não conseguiu melhorar em nada a acessibilidade e muito menos a qualidade e segurança dos cuidados. Logo, podemos dizer que este CA cumpre o princípio básico da política ministerial; despejar dinheiro sobre os problemas e esperar que algo mude.

Todo e qualquer ex-gestor da saúde tem vindo aqui e em muitos outros meios, tecer considerações sobre como resolver problemas que eles/as próprios/as ajudaram a criar. Esse é o paradigma do que indico antes, politização da gestão. Nenhum membro de uma administração anterior critica a actual, a não ser que não tenha qualquer desejo de continuar na vida activa. Caso contrário, o que vemos, ouvimos e lemos, é apenas e só loas a qualquer tipo de administração.

Sabendo tudo isto, enquanto enfermeiro gestor, depois de ter tentado por todos os meios alterar este estado de coisas, vou mais uma vez propor algo que mude o funcionamento do SNS. A saber:

1 – Despolitizar: a nomeação de administrações não pode continuar como está, sobe pena de destruirmos paulatinamente o SNS que todos dizem querer salvaguardar, mas que de facto contribuem para destruir. Assim, as nomeações devem assentar no recrutamento interno das instituições com supervisão de um conselho de cidadãos, que indique ao ministério quem entende ser mais capaz para gerir uma instituição de saúde. O referido conselho de cidadãos, deve ser encontrado entre os residentes da área de influência da estrutura de saúde, definindose como critérios básicos; prestígio, honorabilidade, trabalho a favor da comunidade e avaliados como portadores de carácter irrepreensível, independentemente da sua filiação política, religiosa ou outra.

2 – Política e cultura: a criação de centos hospitalares visava reduzir os custos e melhorar a segurança dos cuidados. O que aconteceu foi facilitar a vida aos privados para recrutarem profissionais de saúde que não sabiam existir na área de influência deles. Aqui surge um problema que compete aos legisladores resolver: o que é público e o que deve ser privado. Se na educação definimos rácios populacionais para atribuir financiamentos a escolas privadas, porque não fazemos o mesmo em relação aos equipamentos de saúde? Por outro lado, a departamentalização dos Centros Hospitalares de facto não trouxeram nada de novo, muito pelo contrário. Ao criarem departamentos a única coisa que fizeram foi criar a figura de um director de departamento, normalmente adepto da administração nomeada, mantendo a figura de um director de serviço, não tendo nem um nem outro qualquer tipo de autonomia em relação ao CA. A conclusão óbvia é, apenas se criaram tachos onde não os havia. Mas estes lugares deveriam servir para travar a prescrição de Exames Complementares de Diagnóstico por tudo e por nada. O director de serviço e o director do departamento deveriam questionar as suas equipas sobre as razões clínicas para pedir isto e aquilo. Não se pode nem deve prescrever ECMD se daí não resultar um esclarecimento para o doente ou informação que permita uma conclusão definitiva.

Por outro lado (aqui um aviso aos defensores dos direitos das pessoas LBGT&) não se percebe que na educação se tenham criado casas de banho multigénero e nos hospitais se continue a separar as pessoas internadas em função de ser mulher ou homem. Eu próprio já fui confrontado em vários momentos com pessoas que têm no cartão do cidadão Manel e que exigem ser tratadas por Francisca e ficarem em camas femininas. Então deveríamos introduzir nos hospitais mecanismos de proteção à intimidade/privacidade, biombos, cortinados, etc mas não termos medo de misturar pessoas e género diferentes.

3 – Da pandemia e o futuro: os vírus deram-nos várias informações que deveríamos atender. Por exemplo, a concentração de pessoas é amiga da infecção. E não estou a falar do covid porque antes já tínhamos taxas de Infeção Associadas aos Cuidados de Saúde (IACS) brutais. Por exemplo, foram notícia com alarme infeções de micro-organismos produtores de carbapenemases, mas hoje isso é tratado como se nada fosse. Para não falar do MRSA, sigla em inglês para Staphylococcus aureus resistente à meticilina que já ninguém quer saber. Fica-se em isolamento de contacto numa enfermaria e pronto. Bem como do clostridium difficile que obriga a isolar as pessoas, mas as condições do internamento não permitem. Contudo, imaginem que numa sala de um serviço de urgência várias pessoas estiveram em contacto com uma outra infectada com clostridium difficile ou um produtor de carbapenemases, de sexo diferente. Uma vez que não há quartos para todos, porque é que não devemos colocar homens e mulheres na mesma enfermaria se a questão é médica e não cultural?

Outra questão da informação dos vírus é que deveríamos estar a repensar a arquitectura dos hospitais, centros de saúde e outros. Porque, se sabemos que a concentração é amiga da infeção, então a desconcentração deve ser inimiga. Por outro lado., sabemos que as esquinas são amigas de tudo o que é mau; radio, micro-organismos, ergonomia, etc. Então, deveríamos estar a pensar em edifícios circulares sem qualquer tipo de esquina, porque tanto a rádio como os micro-organismos ficam com a vida dificultada.

4 – Financiamento, políticas e políticas salariais: enquanto a progressão salarial beneficiar quem progride na horizontal e prejudicar quem progrida na vertical, que é quem se aperfeiçoa, se apresenta a concursos e se especializa, não é possível mais e melhor saúde. Ou seja, as instituições devem ter um plano de carreiras próprio, negociado em sede de concertação social, onde a ponderação salarial tenha em conta a produção e não apenas o estar. Mas esta questão está desde logo ligada à despolitização da gestão. Porque o CHUA e outras instituições do SNS dão a ideia que têm um plano estratégico, mas a única coisa que têm são banalidades. Vejam a visão (Consolidar-se como unidade de excelência no sistema de saúde, com competência, saber e experiência, dotada dos mais avançados recursos técnicos e terapêuticos, vocacionada para a garantia da equidade e universalidade do acesso e de assistência, com vista à elevada satisfação dos doentes e dos profissionais) Imaginem o que sabe um porteiro, enfermeiro, médico, administrativo, sobre isto. Primeiro, não tem tempo. Ou seja, em que ano se deve atingir este desiderato? Segundo, é confusa. Logo, se o planeamento estratégico visa alavancar uma entidade comprometendo todos e tudo de cima abaixo, como é que podemos saber o que compete a cada um em cada posto de trabalho para atingir essa ideia de futuro? Depois experimentem ler os relatórios e contas e tentem ligar aquilo que lá está, com a Missão e a Visão do CHUA

Não está nem pode estar, porque este tipo de posicionamento não tem nada de estratégico.

Por isso é que a gestão se for supervisionada pelos representantes legítimos dos cidadãos, irá contribuir para clarificar estas situações. Até porque o organismo actual, Conselho Consultivo, foi tomado pelos partidos, neste caso socialista, com a presidente desse conselho a ser familiar da presidente do CA o que anula desde logo toda e qualquer isenção do referido conselho.

Antes de concluir, chamar atenção para o seguinte: o desmantelamento das equipas de urgência, pessoal interno em favor de pessoal externo, anulou a coisa mais importante em saúde: confiança do paciente/cliente no médico. Logo, na instituição. Porque um médico tarefeiro de urgência apenas e só está para postar um carimbo, nada mais. Para onde foi a relação médica/profissional de saúde/doente? Morreu e se calhar incinerada por engano.

Concluindo:

a) A formação dos profissionais tem de mudar.

b) A gestão tem de ser despolitizada

c) Os cidadãos têm de participar nos órgãos de gestão/supervisão

d) As remunerações têm de ter em conta a produção e) A arquitectura tem de ser diferente.