As lições de Ronaldo

É curioso não se ouvir falar de gratidão pela família, pelos amigos, por quem salva vidas todos os dias, por quem ensina os nossos filhos a ler e a escrever, por quem constrói as nossas casas, por quem cuida, colhe e transporta os nossos alimentos… Mas pelo Ronaldo, ai de quem não se sentir grato.

É curioso ver como o nosso país se inflama contra e a favor em certos assuntos. Agora, mais uma vez, o assunto é o Ronaldo. Há mesmo quem diga ‘eu sou contra o Ronaldo’ ou ‘eu sou a favor do Ronaldo’, o que tem piada. Como se o Ronaldo não fosse uma pessoa, mas um partido ou uma ideologia.

Eu posso dizer que não sou contra nem a favor. Sou a favor da bondade, da solidariedade, da paz, da igualdade (não da moderna, da genuína e tradicional), da família, da amizade, do amor, da justiça. Por esses valores debato-me e defendo, não pelo Ronaldo. Gosto muito do Ronaldo, como a maioria das pessoas, mas não é por isso que deixo de ver que tem melhores e piores momentos, melhores e piores atitudes, aliás, como toda a gente.

Muitos falam do Ronaldo como um exemplo para as crianças. O exemplo de que com uma enorme vontade, esforço e dedicação, tudo é possível. Até sair de uma casa pobre e em parte difícil, numa pequena ilha, para conquistar o mundo, com a ajuda de um clube e de várias pessoas, mas sobretudo do seu esforço e da sua ambição.

A primeira lição que devemos tirar é essa, sem dúvida.

Mas há outras igualmente importantes. No outro dia alguém dizia que é incrível como o Ronaldo, apesar de tudo o que tem e conquistou, tem necessidade de amesquinhar colegas e fazer pequenas intrigas. Para mim a explicação é simples: por mais fama, admiradores, mérito, dinheiro ou carros que se tenha, nunca se apaga o que se teve, ou neste caso, o que faltou. Essa falta, caso não seja olhada, pensada e restaurada com muita atenção, vai sempre existir, por mais que se tente tapar. E é também por isto que o Ronaldo precisa de ser tão cuidado, tão acarinhado e olha tanto para si próprio.

Porque no fundo há um bocadinho de si que continua sozinho e que tudo o que conquistou não consegue tapar.

E é também por isso que é tão difícil sentir que já não é o mesmo, que os anos passam e o controlo lhe escapa. O que virá a seguir? Não deve ser nada fácil. Uma curtíssima carreira brilhante que se esfuma. E, para quem a juventude é tudo, e luta desmesuradamente por ela, deve ser insuportável senti-la fugir.

Outra lição, que esperemos não vir a tirar, é que devemos respeitar sempre os outros, sobretudo quando eles nos respeitam a nós, não só pelo respeito a eles, mas também a nós próprios, até porque mais tarde, podemos vir a gostar de ter o seu apoio ou companhia. Já não é a primeira vez que Ronaldo não respeita a seleção – que sempre o apoiou – já chegando até a dizer que os jogos não corriam bem porque a equipa era má. Ora, isso é tudo menos de um campeão ou de ser grande, como se referem ao Ronaldo. Mas de quem realmente não se sente completo.

A última lição tem a ver com gratidão, que infelizmente é uma palavra que não aparece muitas vezes no nosso vocabulário, tirando a época do Natal. Muitos dizem que devemos estar gratos ao Ronaldo, que quem falar mal dele é ingrato. É verdade que o Ronaldo levou o nome do nosso pequeno país ao mundo, como aliás já tinham feito outros jogadores de futebol. E foi imensamente pago, premiado e louvado por isso. É curioso não se ouvir falar de gratidão pela família, pelos amigos, por quem salva vidas todos os dias, por quem ensina os nossos filhos a ler e a escrever, por quem constrói as nossas casas, por quem cuida, colhe e transporta os nossos alimentos… Mas pelo Ronaldo, ai de quem não se sentir grato.

Ronaldo é ainda um menino, mas já no final de carreira. Habita na maior casa que quiser, mas uma parte dele ainda vive na que tinha na Madeira. Precisa muito de ser cuidado, amado e acarinhado. Esperemos que tenha quem o apoie nesta fase que poderá ser quase tão difícil como a que teve em criança. Pela maioria dos seus compatriotas será sempre amado e apadrinhado, porque os portugueses sentem Ronaldo como seu.