Inês Meneses. “O meu combustível é a curiosidade”

«Porque há sempre uma resposta para todas as questões», promete Inês Meneses em ‘Fala com Ela’ e cumpre. No entanto, admite que, entre centenas de entrevistas, escolher 14 não foi tão difícil quanto se poderia pensar: isto porque espera ter «trunfos» para um próximo volume se os portugueses aceitarem esta compilação das suas conversas intimistas.

Apaixonou-se pela rádio quando era adolescente. O irmão estava numa rádio pirata e achou que tinha boa voz para começar naquelas andanças. Aceitou e, até hoje, nunca mais largou o estúdio, o microfone, as emissões e as entrevistas. No entanto, Inês Meneses, aos 51 anos, sabe bem que os seus gostos são muito díspares: é comunicadora mas, se lhe apetecer, até frases em serigrafia imprime e está a pensar seriamente em escrever um romance.

Depois de ter publicado Amores (Im)Possíveis, pela Abysmo, e Caderno de Encargos Sentimentais, pela Contraponto, lança agora Fala com Ela, pela mesma editora, a compilação de 14 das centenas de entrevistas que fez ao longo de 18 anos no programa de rádio homónimo (primeiro, emitido na Radar e, posteriormente, na Antena 1).

«Convido quem agora se junta a estas conversas a ler como se escutasse com a atenção e a generosidade da entrega. Tem sido tudo isso que os convidados me têm trazido e a todos agradeço. A conversa, aqui, na rádio, na vida, é inesgotável», começa por frisar numa das primeiras páginas do livro e, por isso, a LUZ quis saber como é Inês Meneses enquanto entrevistada. Este é o resultado final.

Nasceu em Lisboa, mas mudou-se para Vila do Conde. Como é que isto aconteceu? Os meus pais nasceram e viveram no Norte, em sítios diferentes. O meu pai é da Régua, a minha mãe de uma freguesia de Vila do Conde, e o meu pai veio trabalhar para Lisboa. Ficaram cá durante um período de 12-13 anos e, durante esse tempo, nascemos eu e o meu irmão. A dada altura, eles decidiram – nós ainda não tínhamos voto na matéria – voltar às origens e fomos viver para Mindelo, uma zona muito bonita com praia. E foi aí que vivi dos quatro aos 20 anos. Aos 20 fui viver para o Porto porque comecei a trabalhar na TSF, fui convidada, pelo José Alberto Carvalho, para integrar a equipa fundadora da rádio. Portanto, passei dois ou três anos lá. E depois regressei à capital, onde estou até agora, e… Por cá ficarei, penso eu!

Como é que começou a sentir esta paixão pela rádio? Quando tinha 16 anos, o meu irmão – que é jornalista – achou que eu tinha boa voz e disse-me que eu devia experimentar. Ele já estava numa rádio pirata e eu, do nada, fui fazer rádio. Foi outra coisa que fiquei para sempre. Comecei na Rádio Vila do Conde e continuei na Póvoa de Varzim. Durante um período, fiz as madrugadas de fim de semana na Rádio Nova Era, passei para a TSF, vim para a TSF em Lisboa – onde fiquei 12 anos -, estive na Radar 15 anos e, simultaneamente, na Antena 1. 

Nunca sentiu vontade de ter carteira profissional de jornalista? Não. Aquilo que quero fazer é muito mais um trabalho autoral – não que isso não seja possível no jornalismo -, tento deixar a minha marca. Se eu quiser ser elogiosa posso sê-lo, se quiser dar a minha opinião dou… Isto não faz parte das regras básicas do jornalismo. Preferi sempre uma certa liberdade em detrimento dessa carteira. Embora o trabalho que eu faço ande ali a namorar o jornalismo. Sou comunicadora, radialista, autora… Como lhe quiserem chamar!

Tendo começado tão nova nestas lides, alguma vez ponderou mudar de rumo? Nunca! Imagino que, mesmo nesta fase pandémica, as pessoas se tenham questionado muito. Acerca do trabalho, da sua existência, do futuro… É um lugar cheio de incógnitas: se já era antes, isso acentuou-se com a covid-19. O que é que vamos fazer? Como é que vai ser o mundo? Como é que será o planeta? Que líderes temos e teremos? Mas eu gosto realmente de fazer rádio e escrever, mas também de fazer coisas muito livres às vezes. Como imprimir frases em serigrafia e fazer disso uma mensagem que se multiplica… Sei lá, gosto de estar sempre em movimento! Acho que isso é fundamental para não me sentir parada no tempo profissionalmente. Temos de provocar movimento continuamente para que as coisas aconteçam. Então, tenho muitas ideias e vou conseguindo concretizar algumas.

E há alguma que queira concretizar particularmente? Sinto uma espécie de “pressão” dos meus pares para escrever um romance, ficção. Ter-me-ei que obrigar a essa disciplina de começar uma coisa que levará algum tempo. É algo com que não me dou muito bem. Gosto bastante de ter os meus horários e claro que escrever é um exercício contínuo que obriga a uma disciplina férrea. Para já, não a tenho. Faço rádio, podcasts, escrevo crónicas… Vou-me repartindo em pedaços de coisas de que gosto muito, mas sei que tenho essa consciênciazinha no meu ombro a dizer “Escreve um romance!”. Farei isso.

E ao longo dos anos tem refletido acerca de como será esse romance? Sim! Falo muito com o meu editor, o Rui Couceiro, e ele diz: “Pois, mas é preciso pôr isso em prática” ou “Não mais ideias!” porque as coisas têm de se materializar. Faço o “Amor É” com o professor Júlio Machado Vaz, o “Fala com Ela”, o “PBX” com o Pedro Mexia, as crónicas e podcast no Público, as emissões na Futura (uma rádio online)… São pequenas coisas que me roubam algum tempo e a minha vida pessoal. Tenho uma filha adolescente e outras responsabilidades familiares. Sou casada com o Tozé Brito e há lugar para descobertas – livros, música, cinema, etc. -, temos um casamento muito feliz. Ele mostra-me as letras dele, eu mostro-lhe sempre as minhas crónicas, há uma troca super saudável. 

Mas os órgãos de informação insistem na vossa diferença de idades. O que sente? Entendo que seja um assunto sumarento, sendo que é completamente bem aceite porque ele é o homem. Se fosse eu a ter mais 20 anos… Seria um drama!

De todas as tarefas que desempenha, qual é que a desafia mais? Por exemplo, o “Fala com Ela”, um programa que já tem 18 anos, e está agora em livro, estimula-me muito. As pessoas perguntam-me se estou cansada, mas o programa vive muito do convidado. Se ele é bom, dá uma boa conversa… Isso é extremamente desafiante. Aí vivo da entrega dele. A cada semana, tenho uma surpresa. Acabo o programa sempre muito satisfeita com aquilo que recebi. Depois, temos o “Amor É”, que existe há 14 anos, igualmente estimulante, porque aprendo imenso com o professor Júlio Machado Vaz: um homem sábio, curioso. Poderia estar a falar com um homem que, sabendo tanto, achasse que não precisaria de saber mais. Mas nós trocamos bolas no sentido em que ele me dá a conhecer imensas coisas, mas eu também lhe dou algumas. Se escolho determinada canção que ele não conhecia, imaginemos, vai à procura. Essa curiosidade que o move, e que me move a mim também, gera a cumplicidade muito feliz que existe entre nós. O meu/nosso combustível é a curiosidade, assim como o espanto. Espanto esse que também é fundamental quando conversas com pessoas diferentes. No PBX, onde estou com o Pedro Mexia, no Expresso, diria que sou mais a pivô. Ele tem as qualidades que sabemos: ele é um verdadeiro intelectual. Eu sou muito mais pop e, portanto, acabamos por cruzar de uma maneira feliz, acho eu, as nossas vivências e os nossos gostos, assim como conhecimentos. Eu vivo muito destas cumplicidades. A coisa mais estimulante, para mim, são as crónicas que escrevo para o Público – “O coração ainda bate” – porque dou sempre muito de mim. É uma espécie de diário semanal. Todas as semanas, tenho de inventar uma crónica nova naquele tom meio confessional, intimista. Já ultrapassei as 100 crónicas, inclusivamente deu um livro homónimo, que reuniu os primeiros 40 textos, e gosto muito também do podcast. Tenho imenso feedback. Sinto que, para além da minha vida, posso mexer com a vida de alguém sem querer e pensar nisso propositadamente. Falando numa linguagem universal – a dor, a perda, o amor, a amizade, etc. -, chego às pessoas. Sou inteiramente eu ali. Não sei se enquanto jornalista o faria desta forma tão confessional. Ponho ali, de facto, os meus sentimentos, as minhas dores… E as pessoas já sabem que contam com aquilo todas as segundas-feiras.

Os leitores também estão cansados de ler crónicas “formais” e com estruturas semelhantes. É verdade, percebo. É uma linguagem que não nos toca. Existe a falta de humanização em crónicas, como as dos políticos. Por isso é que quase não os entrevisto: tenho sempre de falar com pessoas que se permitam dar. Precisamos das notícias, de saber como está o mundo, mas não de mais discurso desumanizado. No sentido em que não nos revemos naquilo que escrevem e dizem. É necessário levar mais mundo interior para o resto do mundo. Muitas das vezes, as pessoas escrevem-me e enviam-me mensagens de voz a explicar coisas como “Isto era tudo aquilo que precisava de ouvir”, “Adivinhou os meus pensamentos” ou “Isto poderia ter sido escrito por mim”.

Já fez centenas de entrevistas ao longo da sua carreira. Sabe quantas ao certo? Exato, mas não as consigo contabilizar. No caso das crónicas e dos podcasts, é muito mais fácil. Por exemplo, eu já repeti entrevistas. Lembro-me de estar na Radar e repetir conversas no verão. Mas, mesmo com repetições, dá para muita conversa!

Mas há pessoas cujas histórias não se esgotam num episódio. Claro. Não é à toa que tenho convidados com os quais falei três e quatro vezes ao longo destes 18 anos. Quando as pessoas não têm um discurso pensado, coisa que pode acontecer com os nossos políticos, a conversa é sempre surpreendente. Porque dali sairão sempre pensamentos e ideias novos.

Como é que, entre tantas entrevistas, fez esta seleção para o livro? Tenho muito medo de ser injusta e acho que a idade/maturidade acentuou a vontade de não o ser. Mas, neste caso, tinha de fazer uma seleção: mesmo 20 entrevistas, por exemplo, já fariam deste livro algo enorme. A Paula Rego era obrigatória porque catapultou o programa para um lugar com mais visibilidade, mais audiência. O Herman José porque é uma entrevista de 2014 em que falou bastante, partilhou muito dele. A Maria Rueff porque é uma mulher que admiro pelo humor, mas também tem o outro lado: da fé, dos sentimentos, das dores. A Ana Moura porque, para além de ser uma amiga, recebi-a pouco depois da morte do Prince e resolveu falar da sua proximidade com ele. Como geria esta perda, ela que privou de tão perto com ele. A Adriana Calcanhotto, que entrevistei três vezes, é uma pessoa muito discreta, sem necessidade de show off algum, talentosa, sóbria. O Julião Sarmento era um grande artista e deixou, felizmente, muita obra, e era um homem “dos amigos”. Prezava a amizade. O Fausto porque é raríssimo dar entrevistas e esta tinha de figurar nesta primeira seleção. O Rui Reininho foi o primeiro entrevistado no “Fala com Ela”. O Carlos do Carmo e o Bernardo Sassetti porque os queria deixar imortalizados no meu universo com aquilo que me deram enquanto entrevistados. O Carlos Tê, um homem muito discreto… É engraçado porque o Carlos do Carmo Cantou “o homem na cidade” e diria que o Carlos Tê é um homem da cidade do Porto e fala e escreve sobre a cidade como poucos falam e escrevem. O Gregório Duvivier… Admiro-o e tem uma inteligência e humor únicos. O Miguel Esteves Cardoso e o Pedro Cabrita Reis são fantásticos também. Sendo injusta com todos os outros, não foi assim tão difícil a escolha. Na eventualidade de surgir outro volume, encontrarei justificações facilmente para os próximos convidados escolhidos. Todos eles foram marcantes e por isso é que vão ao “Fala com Ela”. 

Algum entrevistado ficou zangado consigo por não aparecer no livro? Não, houve só uma brincadeira da Rita Blanco! “O quê? Eu não apareço no livro?” com todo o humor que lhe é característico! É uma das entrevistadas mais brilhantes do “Fala com Ela” e preciso de trunfos para um próximo volume.

Poderia publicar vários volumes, compilar mais entrevistas. Há esta ideia de que os livros de entrevistas não vendem muito em Portugal. Vamos ver se este contraria essa ideia. Acho que temos, sinceramente, um documento importante. Quando estava a reler as entrevistas, já transcritas, fiquei muito satisfeitas porque delas se retiram momentos tocantes que fazem parte da História do país. Digo que o livro é uma linha de tempo do país, da minha vida. Estão aqui representadas pessoas que contribuíram para que o país fosse melhor. A Adriana e o Gregório são brasileiros mas, curiosamente, passam imenso tempo cá. Mas dos portugueses de Portugal, diria que estes nomes contribuíram e contribuem para que o país seja um lugar melhor. Vamos ver se o público agarra o magnetismo que acho que este livro pode ter e, portanto, sim, um segundo volume seria maravilhoso.

As pessoas não estão habituadas a livros no geral. Pois, é verdade. Estamos todos nesse sítio. Evidentemente trocámos os livros pelas novas tecnologias, de maneira geral, como trocámos a ida ao cinema pelas plataformas de streaming. Serão poucos aqueles que levantam o dedo para dizer “Eu leio x livros por mês”. Costumo contar isto no “Amor é”: quando ia trabalhar, todos os dias, via pessoas agarradas aos telemóveis e outras aos livros. Os transportes públicos foram sempre espaços de leitura. Hoje em dia, aquela proporção de 90-10%, diria eu, é real. É isso que se passa no geral: não só em Portugal. Começamos o dia a ver as notícias no telemóvel, lemos artigos mais extensos também lá e, de repente, o tempo é pouco. À noite estamos cansados, preferimos ver uma série, depois vamos dormir… Estamos a fazer as nossas escolhas. Estamos num tempo em que a oferta é imensa – viemos de tempos muito tristes em que era nenhuma -, mas, por outro lado, as pessoas estão um bocadinho perdidas neste leque de escolhas múltiplo. Temos muito de tudo atualmente. Acho que vivemos um tempo de excesso e vamos ficar atordoados. Haverá uma altura em que teremos de fazer escolhas mais acertadas. O estado do planeta é resultado de excessos também. 

Ganhou quantos prémios? Ganhei, em 2015, o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Programa de Rádio e no PODES (Festival de Podcasts) já ganhei três vezes o prémio para Melhor Podcast de Rádio. O livro não menciona ainda o terceiro prémio porque saiu antes de o mesmo ter sido anunciado. 

Ao longo do livro, cita várias personalidades que admira. Na entrevista a Adriana Calcanhotto, começa por mencionar Joan Didion e, especificamente, a obra O Ano do Pensamento Mágico. Escreveu “Já não me lembro das vezes todas que citei a americana Joan Didion, foram muitas, com aquele arrasador, porque simples, honesto e desconcertante, preencher de página em branco, quando ela lembra ‘a vida muda num instante, num dia normal’. É O Ano do Pensamento Mágico, um que lhe esculpiu os sentimentos na escrita. A dor enche muitas páginas, todos sabemos disso, e, no entanto, talvez nesse caso preferíssemos, muitas vezes, a página em branco àquela talhada pela dor. As canções, os filmes, os livros enchem -se dessa dor, depois de libertada, passa a ser outra coisa”. Foi muito marcante para mim, assim como o documentário – The Center Will Not Hold (2017) – e perceber as perdas da Joan. Morreu no ano passado, foi uma mulher com resiliência… Alguém que passa pela morte repentina do marido, a morte da filha e ela continuou a lutar… No documentário vemo-la frágil, mas lúcida e com um pensamento sustentado. Ela e o marido viveram um tempo áureo: conviveram com atores, escritores… Mas a adoção da filha não correu como esperavam e o problema maior foi a fase final.

Na sua última crónica, a 28 de novembro, escreveu: “Ponho-me no coração dos outros como se lhes calçasse os sapatos”. Esta frase resume a forma como fala do amor e dos sentimentos em geral? As crónicas são sempre, absolutamente, saídas do coração. Quando me sento, ali no sofá, para escrever, às vezes já tenho uma ideia desenhada de algo que vi, captei, senti… A minha mãe morreu há dois meses e tudo isso foi muito marcante para mim. É fácil ficarmos presos a tudo isso e passarmos a prestar mais atenção ao cuidado que os outros têm com os mais velhos, à relação que temos com a morte, a perda, a dor. O que leva uns a camuflar a dor e outros se desfazerem em lágrimas? Tudo isso me interessa.

Também escreveu: “Basta lembrar que um dia morremos e o biquíni nunca fez parte da equação. O coração que o diga”. Amamos alguém… Não pelo corpo, tem de ser muito mais do que isso. Temos de amar o que vem de dentro: a generosidade, o cuidado, a inteligência, o humor… Há muitas coisas. O “embrulho”, o exterior, é magnético, mas há muito mais para além disso. Estamos a viver uma altura em que as pessoas estão verdadeiramente obcecadas com o corpo, a imagem e isso assusta-me. Não se escrevem livros com o exterior. Quando falamos da Oprah, por exemplo, tornou-se uma das mulheres mais poderosas porque é forte, teve um passado complicado e deu a volta… Não a conheço, não sei que pessoa realmente é, mas impôs-se e hoje é poderosa. O que ela tem é magnético e vem de dentro. Esta preocupação com o embrulho é uma coisa que me desconcerta. As pessoas esforçam-se o dobro ou o triplo para mostrarem que são realmente boas naquilo que fazem porque, se calhar, o embrulho não é tão bom como o das outras pessoas. Estamos numa era que premeia o embrulho.

Em 2015, numa entrevista, referiu algumas das pessoas que gostaria de entrevistar. Uma delas era Nick Cave. Não tenho uma lista, mas o Nick Cave é uma figura que admiro desde adolescente. Passou por fases diferentes, eu também, é tentador dizer que a perda o humanizou, mas a verdade é que as perdas o aproximaram muito mais do público e ele atingiu um estatuto muito próximo de um Deus alcançável.

No Observador, em setembro de 2016, escreveu: “Às 10h26 da manhã, na Radar, já eu tinha cruzado Nick Cave com PJ Harvey. Faço esta coisa infantil de criar um universo paralelo para os meus heróis. Junto-os quando eles foram amantes. Junto-os até quando já não são vivos e, acredito eu, podem viver para além do que vemos. No dia a seguir à morte de Prince acabei a juntá-lo com Bowie lembrando que aquele era o dia em que os cruzava e eles já não estavam vivos. Nunca eu pensei estar ali. Ou eles não estarem ali”. Basta ir a um concerto dele para se perceber como as pessoas querem ser tocadas por ele, estar próximas dele, ouvir aquilo que ele tem para dizer. Estamos a falar de pessoas que admiramos e não sabemos como são para além de artistas, a proximidade pode estragar o encanto pelo artista… Mas no caso dele acho que é marcante e impressionante que esteja a fazer música há tanto tempo e se saiba reinventar. Ao início, falávamos de provocar movimento e ele sabe fazê-lo. Tem as armas da curiosidade e do espanto. Não precisamos de ir no sentido da evolução, mas sim da não estagnação. 

No mesmo texto, redigiu: “O que Nick Cave, a mulher, o filho e os amigos todos estão a fazer é isso: viver. É disso que precisamos todos: entregarmo-nos à dor quando for preciso e aguentá-la para depois voltar à superfície. Não tenham pena dele, nem de vocês próprios. Há tanto por viver”. Nick Cave homenageou a jovem Beatriz Lebre, que foi assassinada em 2020, quando atuou no festival Kalorama. Eu vi. Fizemos um programa, no “Amor É”, exatamente sobre ela, aquilo de que foi vítima e a mãe. Ela esteve no concerto e a forma como assimila a dor, o facto de não sentir raiva pelo homicida da filha… Tudo isso é muito curioso. É um exemplo também porque o mais fácil seria odiar sem limites aquele rapaz que lhe roubou a filha. Mas não: ela tem uma capacidade admirável de desconstruir esse ódio e tenta pensar nos pais daquele rapaz. Porque eles também estão em perda. Estende-lhes a mão e aceita que também são vítimas de tudo.

E para além de Nick Cave? Manuel Reis, o fundador do Lux-Frágil. Foi um visionário e esta Lisboa cosmopolita, como a conhecemos agora, foi muito obra de um homem que teve a visão de tornar a cidade mais aberta porque um bar e uma discoteca não foram apenas um bar e uma discoteca: foram lugares de pensamento, liberdade, criatividade, culto. E o Manuel Reis era essa pessoa que abria o seu espaço aos outros, à diversidade e, no entanto, era dos homens mais discretos e tímidos que conheci. Tentei, muitas vezes, entrevistá-lo: mas nunca consegui convencê-lo. Mas foi com ele que fizemos a festa dos 10 anos do “Fala com Ela”. Ele era bastante recatado e dava bastante o palco aos outros. Fez muitíssimo pela cidade e pelo país. Ainda não lhe é reconhecida a devida importância. Teve imensa importância num Bairro Alto que, nos anos 80, explodiu. O Frágil, o Pap’Açorda, os estilistas que ali tinham os cabeleireiros… Precisámos daquela cidade para nos autonomizarmos, ganharmos confiança, sermos criativos e isso deve-se, em grande parte, a ele. As pessoas tendem a dizer que ele dizia muito a poucos e muito pouco a muitos, mas não é assim: ele abriu horizontes. Somos o que somos, enquanto cidade, por causa dele. É um dos visionários: tal como o António Variações, a Amália…

O Carlos Paião. Sim! Era genial na forma como escrevia aquelas letras que tão facilmente ficavam no ouvido. E ter o outro lado de ser médico! As pessoas vão, mas deixam a sua obra. O António Variações foi muito incompreendido no seu tempo, mas, hoje em dia, existe um culto à volta dele… Toda a gente diz que gosta dele. Naquela altura, insultavam-no! Demos um salto em termos de abertura de pensamento. Estes últimos 20-30 anos foram fundamentais.

Se ele nos está a ouvir e ver, é capaz de se rir com esta coisa de ser adorado por todos. Numa das letras dizia “Lá vai o maluco”: era aquilo que lhe gritavam. Mas, atualmente, temo-lo como um génio: e é o que ele é. 

Tal como o Freddie Mercury, por exemplo? Sim. Ainda ontem estive a ver um documentário maravilhoso, chamado “Blitz”, sobre uma discoteca que existiu em Londres, e por onde passaram grandes figuras da música inglesa. Tínhamos o Boy George a trabalhar no bengaleiro, o David Bowie atuava lá, ninguém lá entrava com um outfit dito “normal” e quase todos viviam em bairros sociais. Muitos dos músicos que ficaram na História viveram tempos de austeridade, fases complicadas. Deram a volta porque sempre foram inventivos e seguiram em frente. O Bowie, para mim, é gigante: sozinho fez uma revolução estética, de pensamento, musical… É admirável. Foi uma perda enorme.

Mais uma entrevista que gostaria de ter feito! Exatamente! [risos]

Tendo em conta que parece ser uma melómana, quais foram os discos que a marcaram mais? Porcupine dos Echo & Bunnymen e Simon and the Garfunkel ao vivo no Central Park porque era muito nova quando os ouvi.