A lei da eutanásia aprovada pelo Parlamento visa, segundo os seus promotores, despenalizar a chamada ‘morte assistida’.
Ou seja: alguém que ajude outrem a morrer, sendo esta a sua vontade, não poderá a partir de agora ser criminalizado.
É uma lei piedosa: seria justo condenar uma pessoa por ajudar outra em sofrimento atroz ou com uma doença terminal a pôr termo à vida?
Esse paciente em desespero não terá direito a uma morte com dignidade – e ajudá-lo a cumprir esse desejo não deverá ser considerado um ato de humanidade e não um crime?
Naturalmente será necessário que se cumpram certas formalidades, para evitar abusos.
Mas, uma vez cumpridas, não deveria haver mais nada a dizer.
Tudo isto parece lógico e razoável. Só que assenta sobre uma falsa questão.
Há alguém preso por ter ajudado uma pessoa a morrer?
Houve alguém condenado por ajudar uma pessoa a morrer?
Que se saiba, não houve.
Trata-se, por isso, de um ‘não problema’.
Argumentam os defensores da lei que, exatamente pelo facto de não haver ninguém preso nem condenado, se impõe a adequação da lei à realidade.
Ora aqui é que está a grande mentira.
O objetivo da apresentação da lei não foi despenalizar a eutanásia.
Na prática, ela está despenalizada.
O que os seus promotores quiseram foi quebrar um tabu, romper um princípio.
Ao ficar escrito na lei que a eutanásia deixa de ser crime, abre-se o caminho para a sua liberalização total.
Foi isto que aconteceu, sem tirar nem pôr, com o aborto.
O objetivo declarado da lei também era, inicialmente, ‘despenalizar o aborto’.
Evitar a condenação das mulheres que fizessem aborto e de todos os que colaborassem nesse ato.
A primeira lei era muito restritiva: contemplava os casos de violação e outras situações extremas, e era muitíssimo exigente nos prazos.
Só que, com o tempo, as limitações foram caindo, uma após outra.
Numa das últimas revisões, Cavaco Silva ainda exigiu a existência de uma reunião prévia onde quem quisesse abortar explicasse as razões por que o fazia.
Mas até isso caiu, considerando-se ser ‘vexatório’ para a mulher.
Agora não é preciso explicar nada: chega-se ao SNS e pede-se para abortar.
Em meia dúzia de anos, passou-se da ‘despenalização do aborto’ para a ‘liberalização do aborto’.
E com a eutanásia vai acontecer exatamente o mesmo.
Nestas questões, o problema é aceitar-se a violação do princípio.
Uma vez isso conseguido, ou seja, uma vez entreaberta a porta, esta irá depois ser empurrada até ficar escancarada.
Por isso, é absolutamente inútil estar a discutir esta lei em concreto.
Tal como no aborto, a primeira lei de despenalização da eutanásia teria sempre de ser cheia de condicionantes, de limitações, de garantias – até para poder passar no Parlamento sem excessiva polémica e não ser chumbada pelo Tribunal Constitucional.
Mas, a partir da agora, os procedimentos ir-se-ão simplificando, a burocracia irá caindo, tudo irá sendo mais fácil.
Nestas questões chamadas fraturantes – e não só no aborto – tem sido sempre assim.
Quem não se lembra das primeiras propostas de lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em que era expressamente interdita a adoção de crianças?
Ora, uma vez a lei aprovada, quebrada essa barreira, conseguido esse objetivo, a luta pela adoção começou – e hoje ela aí está em vigor.
Estes processos têm sido conduzidos com uma assinalável hipocrisia, e só é estranho que a memória das pessoas seja tão curta.
Faz-me imensa confusão ver pessoas inteligentes a discutir sobre se a lei é boa ou má, se dá ou não dá garantias, como se isso interessasse alguma coisa.
Como se não soubessem que hoje é assim mas amanhã será assado.
Como se desconhecessem o que se passa noutros países, como a Bélgica, onde a eutanásia se banalizou e à volta da qual existe hoje uma verdadeira indústria da morte.
Há médicos que a troco de uns euros passam atestados médicos garantindo que os pacientes sofrem de doença incurável, física ou psicológica, e têm razões para se quererem matar.
Há médicos que se especializaram em ir a casa dos pacientes ministrar injeções letais.
Muitos dos que concordam com a eutanásia são bem-intencionados; não duvido disso.
Mas os seus propagandistas ou são ingénuos ou são hipócritas.
Invocam razões humanitárias, mas os seus objetivos são outros: têm uma agenda ideológica e usam falsos argumentos para a pôr em prática.
Falam da ‘despenalização’, sabendo que o seu objetivo não é esse mas sim quebrar o tabu da inviolabilidade da vida humana – que, uma vez ultrapassada, permitirá todas as monstruosidades.
Qualquer dia um indivíduo baterá à porta do SNS a pedir para o matarem – e os médicos não terão argumentos para recusar o pedido.