A intempérie, os crentes e os aproveitadores políticos

As torrentes de informação, como a que vivemos, têm duas consequências sobre a interpretação do real, geram informação sem análise e análise sem informação. Não é possível extrair todas as consequências em cima dos acontecimentos, é preciso tempo e serenidade.

Por Francisco Gonçalves

A intempérie que se abateu sobre Portugal continental, nas últimas semanas, ceifou vidas, condicionou outras e provocou prejuízos de substancial monta, quer em propriedade particular, quer na infraestrutura pública. Motivos de sobra para provocar a catadupa de informação que se seguiu, libertando dois tipos de criaturas que poluem o ambiente político: os crentes absolutos e os aproveitadores políticos.

Os crentes absolutos defendem que tudo o que hoje acontece decorre das alterações climáticas, fenómeno que praticamente ninguém nega, até porque negar a evidência faz parte do absurdo do ‘pós-verdade’, mas sobre o qual qualquer um que assuma uma posição moderada é fustigado como perigoso negacionista. Como tal, seria mais ajuizado estar quieto, de modo a não nos sujeitarmos ao julgamento dos ‘donos da verdade climática’, verdadeiros carrascos contemporâneos. Todavia, é mais interessante mostrar a face real do carrasco.

O aproveitador político é o cínico que, fruindo da evidência das alterações climáticas, e percebendo a maré positiva que o tema gera junto da população, tenta surfar a onda política e assume-se como paladino do que nunca foi. O crente é alguém que tem problemas em analisar todo o espectro, tão focado que está numa só dimensão da realidade, o aproveitador político é apenas mais um hipócrita. Nada tem de positivo para oferecer.

 

As torrentes de informação, como a que vivemos, têm duas consequências sobre a interpretação do real, geram informação sem análise e análise sem informação. Não é possível extrair todas as consequências em cima dos acontecimentos, é preciso tempo e serenidade.

Com tempo, ninguém aceitaria que se dissesse que as cheias decorrem apenas do excesso de impermeabilização dos solos pois, com a tranquilidade que este dá, percebemos que se houve cheias na Amadora, Cascais, Loures, Lisboa, Odivelas e Oeiras, também as houve em Campo Maior. Alguém imagina que as cheias em Campo Maior decorrem da impermeabilização dos solos?

A impermeabilização dos solos na cidade deve estar associada à criação de infraestruturas que a suportem. Devemos questionar-nos: por que razão não há essas infraestruturas? Quando a infraestrutura construída não acompanhou a evolução do uso dos solos no Concelho, há uma responsabilidade objetiva a assacar. Todavia, nem sempre é isso que está em causa.

 

Quando um loteamento é aprovado num Concelho que se situa a montante do território de um outro Concelho, para onde correrão as águas? Os rios e as ribeiras não conhecem os limites dos territórios, correm para onde têm de correr. Não pode ser o Município a jusante a suportar os custos da infraestrutura decorrentes da impermeabilização dos solos no Município a montante.

Há questões que são do foro supramunicipal, muitas delas esquecidas nas gavetas das empresas públicas de todos os governos ou da administração desconcentrada, que obedecem ao chefe que nomeia, mas que não presta contas ao Povo. 

Estamos, em grande medida, a enfrentar os limites da arquitetura administrativa do Estado. Há, objetivamente, a falta de um poder regional (regiões administrativas, isto é, autarquias de grande dimensão), que permita responder com maior coerência e eficácia a questões com esta complexidade.

 

Estas são as questões sobre as quais devíamos estar a ponderar. Todavia, o foco comunicacional no espetáculo que os crentes e os aproveitadores políticos vão dando, desfoca do essencial. Quando vir um ou outro fuja. O primeiro tenta converter à força, o outro vive de enganar.