Instalada na parte oriental de Lisboa, a Expo 98 operou uma verdadeira revolução urbana na capital. O que antes era uma zona industrial triste e degradada, cheia de chaminés, de armazéns e de sucatas, transformou-se num verdadeiro museu de arquitetura a céu aberto. Obras arrojadas de Siza Vieira (Pavilhão de Portugal), Carrilho da Graça (Pavilhão do Conhecimento), Santiago Calatrava (Estação do Oriente), Peter Chermayeff (Oceanário) e Manuel Salgado (Teatro Camões), entre muitos outros, ergueram-se em terrenos antes ocupados pela refinaria da SACOR, um matadouro municipal e vazadouros de lixo. Mas, se houve muitos arquitetos, engenheiros, urbanistas e empreiteiros envolvidos no projeto, a Expo foi acima de tudo obra de um grande artífice: António Mega Ferreira. Foi da sua cabeça que partiu a ideia de organizar em Lisboa a Exposição Mundial de 1998, ano que antecedeu o do quinto centenário da viagem de Vasco da Gama à Índia, sob o tema dos oceanos. Mega apresentou o projeto ao Bureau International d’Expositions e a candidatura portuguesa derrotou, contra todas as expectativas, a canadiana.
Embora a Expo 98 fosse o ponto culminante do seu percurso, “o período mais intenso do ponto de vista profissional”, como reconheceria, e onde deixou maior marca, Mega Ferreira fez muitas outras coisas ao longo da vida. O antigo jornalista, escritor, cronista, gestor cultural que presidiu ao CCB – e, não esquecer, benfiquista ferrenho – faleceu ontem em Lisboa, aos 73 anos. A notícia foi avançada ao final da manhã através de uma nota de condolências no site da Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa evocou o “colega desde o Liceu Pedro Nunes até ao fim do curso na Faculdade de Direito de Lisboa, um amigo de sempre”, descrevendo-o como “esteta, entusiasta, erudito” e “um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura”. As causas de morte não foram reveladas.
BD, ópera e cinema “Sou uma pessoa solar, sempre fui, desde pequenino”, dizia Mega Ferreira em entrevista ao semanário Nascer do SOL em março de 2021. “Desde as fotografias que tenho com três e quatro anos de idade, eu sou solar, vejo o lado diurno da vida”.
A cultura e o entusiasmo pelos livros vinham praticamente do berço. “O meu pai, era eu muito pequeno – com quatro, cinco anos de idade, por aí -, aparecia praticamente todos os dias da semana em casa com um rolinho de papel kraft. E dentro desse rolinho que ele me dava para a mão vinha tudo o que havia de banda desenhada: o Condor Popular, o Condor Mensal, o Cavaleiro Andante, depois o Falcão, o Foguetão…”, recordou nessa entrevista. “Não sabia ler, portanto via os bonecos”. Assumia que essas publicações, em especial o Cavaleiro Andante, tinham desempenhado “um papel importantíssimo” na sua formação.
Também o gosto pela música – o último cargo público que ocupou foi de diretor da Associação Música, Educação e Cultura, que gere a Orquestra Metropolitana e as suas escolas – lhe foi incutido muito cedo. Lamentava não ter aprendido a tocar piano mas “muito pequenino, com sete, oito anos”, começou a ir à ópera no Coliseu com a mãe e a irmã (que acabaria por fazer o curso de piano do Conservatório).
“E depois comecei a ir com amigos. Lembro-me perfeitamente da temporada de 62-63, aos meus 13 anos, em que comprei bilhetes para o São Carlos com o meu dinheiro”, lembrou ao Nascer do SOL. “Ganhei muito cedo esse gosto pela ópera. Ainda adoro ópera e tenho montes de óperas. Mas oiço mais música instrumental”.
A terceira paixão foi o cinema. No final da adolescência teve um período de cinefilia em que chegava a ver três filmes por dia. Pouco criterioso, “papava tudo”.
O seu primeiro emprego foi na Secretaria de Estado da Informação e Turismo, instituição que sucedera ao SNI (Secretaria de Estado da Informação, que tinha o pelouro da propaganda, da comunicação social e da cultura no Estado Novo), e que ficava sediada no Palácio Foz, aos Restauradores. Tinha 20 anos e era “técnico de terceira classe em regime eventual”.
Depois de se licenciar em Direito, foi estudar comunicação social para Inglaterra. Esteve em Londres e Manchester. “Há uma coisa que só quem viveu antes do 25 de Abril – e eu em 71 já tinha 22 anos – pode perceber: a liberdade sente-se no ar. Isto era uma coisa oclusiva, cinzentona, e respirava-se mal. Não havia qualquer espécie de liberdade. E lá havia toda a espécie de liberdade – até aquelas que a gente nem imaginava que pudessem existir”. E dava um exemplo: “Nunca tinha imaginado antes disso que fosse possível ir para a cama com uma data de gente. Uma data de gente que estava ali na boa, nem sequer estavam propriamente a fazer amor – fumavam charros e tal”.
Vinha também desse período em Inglaterra o seu entusiasmo – que o próprio reconhecia que tinha muito pouco de racional – pelo futebol. Aos fins de semana “ia ver o Chelsea, clube que hoje detesto, mas na altura era o que estava mais perto”.
Reuniões da Expo no sofá De regresso a Portugal, passou pelo Expresso, ANOP, RTP e Jornal de Letras. Gostava de recordar o gozo que lhe tinha dado ser chefe de redação deste último. “Sabe porquê? Porque era eu que fazia tudo”. Fundou a revista Ler e foi diretor do Círculo de Leitores.
Detestou as cerca de dez viagens que fez à Coreia do Sul como vice-comissário da representação portuguesa na Expo ‘93, mas a experiência preparou-o para o que viria a seguir – a Expo 98 em Lisboa, de que foi comissário executivo.
“Mesmo antes da Expo tive um cancro”, revelou. “Sobretudo o pós-operatório foi um horror, com infeções e mais operações, durante um ano foi uma coisa terrível – e eu vivia praticamente deitado neste sofá, até reuniões da Expo eu fazia aqui. Eles vinham, sentavam-se à volta desta mesa, eu estava aqui deitado e perorava: ‘Faz assim, faz-se assado’. Estava aqui com a Expo a menos de um ano de abrir. Imagine a tensão em que eu estava”.
A cultura ajudou-o a “sobreviver”, confessaria. “A música tocava de manhã à noite e tinha duas pilhas de livros aí no chão, e cadernos onde escrevia – ajudaram-me a passar pelo calvário que foi esse pós-operatório horrível”. Passou, já nos anos 2000, por uma operação complicada ao coração.
Nomeado por Cavaco Sobre se a sua proximidade ao Partido Socialista tinha ajudado a pavimentar-lhe o percurso profissional, esclarecia: “Fui nomeado administrador da Parque Expo por uma pessoa que não é um amigo, que é o Professor Cavaco Silva. Num Governo do PSD, que não é o partido com que eu me identifico. E depois sim, passei a presidente já depois de 98, com um Governo de António Guterres e do PS, mas já lá estava desde 93. Depois a nomeação para o CCB. Fui nomeado pelo engenheiro Sócrates, que conhecia, mas de quem nunca fui amigo – porque nunca se proporcionou. A partir de certa altura de notoriedade pública as influências políticas já não servem para nada”.
António Mega Ferreira vivia num apartamento no centro de Lisboa, perto da Avenida da Liberdade, rodeado pelos seus cerca dez mil livros, pinturas (que já não tinham espaço nas paredes) e de CD – uma fabulosa coleção que atestava o seu profundo gosto e conhecimento musical.
Este apartamento, para onde se mudara há perto de 30 anos, “era a casa da avó do António Costa. Aqui mesmo onde estamos era uma sala e ali havia um quartinho que eu mandei abrir, o quartinho onde o António Costa dormia quando vinha estar com a avó. E aqui na sala estava, creio que desse lado, uma mesa redonda com tampo de vidro onde estudaram e fizeram o seu curso de Direito o Jorge Sampaio e o tio do António Costa”, contou na mesma entrevista ao Nascer do SOL.
Homem muito viajado, falava com enorme entusiasmo do Japão e era um apaixonado por Itália – tema de um dos seus últimos livros, Crónicas Italianas (ed. Sextante), uma homenagem a Stendhal. Nos três últimos anos, problemas de mobilidade impediam-no de viajar.
Foi casado duas vezes mas não teve filhos. Deixa a irmã e três sobrinhos, entre os quais Duarte Azinheira, diretor editorial da Imprensa Nacional Casa da Moeda. Ultimamente estava mergulhado na escrita de um romance sobre a última passagem por Lisboa, em 1916, do poeta Camilo Pessanha, autor da Clepsidra (de que Mega possuía uma rara 1.ª edição).