Nas televisões ouvimos falar de inflação. Em perda do poder de compra. Em dificuldades financeiras. Em aumento da pobreza.
Os repórteres vão aos mercados e os vendedores dizem que as pessoas compram menos, se retraem. E os clientes queixam-se dos preços altos e garantem que no dia-a-dia têm de fazer poupanças e que neste Natal gastaram menos dinheiro.
Este é o mundo das televisões.
Mas o que vejo eu?
Saio à rua, olho à volta e vejo um mar carros. E não são carros velhos, de modelos desatualizados, com a pintura esfolada: em geral são carros de modelos recentes. Veem-se muitas matrículas novas, pululam os SUV, que surgiram não há muitos anos, e são vulgares os Mercedes e os BMW.
À hora do almoço entro num restaurante para almoçar e não há mesas vagas. Vou a outro e repete-se a cena. Os restaurantes estão cheios, a abarrotar, sejam mais populares ou mais pretensiosos. Pergunto a um empregado quando haverá mesa, e ele fuzila-me com um olhar entre a surpresa e a hostilidade, como se fosse uma pergunta disparatada: «Mesa? Nem daqui a meia hora!»
Nos supermercados, passa-se o mesmo: as pessoas acotovelam-se nos corredores, empurrando carrinhos de compras cheios até acima, e nas caixas formam-se compridas filas.
Nos centros comerciais, o espetáculo é ainda pior. Em certas lojas há bichas à entrada e indivíduos a tentarem meter-se à nossa frente, para chegarem ao balcão primeiro. Sente-se uma voracidade em comprar, como se houvesse medo de que os produtos se esgotem.
E à entrada e saída dos parques de estacionamento repetem-se as filas – agora de carros –, obrigando a longas esperas.
Vejo muita gente vestida ‘à moda’, o que não quer dizer ‘bem vestida’. Ainda se usam os jeans com buracos e rasgões, que fizeram furor durante um tempo, mas já há menos.
Agora, as mulheres cobrem-se com uns trapos postos uns por cima dos outros, de cores escuras – preto, castanho ou cinzento –, informes e muito largos, tendo o dobro ou o triplo do tecido que seria necessário. Os vestidos com formas definidas e cores alegres desapareceram por completo.
Com os homens sucede um pouco o contrário: os casacos são demasiados justos, parecendo que encolheram, e as calças são afuniladas em baixo, coladas à perna.
Nada disto me parece bonito ou elegante, mas andar à moda custa dinheiro.
Como adereços, toda esta gente, seja mais nova ou mais velha, anda de telemóvel na mão, de última geração. Uns a falar, de aparelho encostado ao ouvido, outros a olhar para o ecrã luminoso.
E como de pequenino é que se torne o pepino, as crianças começam logo de tenra idade a ser habituadas a consumir. Nos seus quartos não se pode entrar, pois o chão está coberto de brinquedos. E como muitos funcionam a pilhas, quando estas acabam os brinquedos são atirados para um canto e substituídos por outros, que dentro em pouco terão o mesmo destino.
Perante toda esta voragem consumista, eu pergunto: crise? Qual crise?
Acredito que haja gente com dificuldades, a passar mal. Mas há muita gente a gastar, a comprar, a esbanjar…
Consome-se, consome-se…
O Natal perdeu toda a dimensão espiritual e tornou-se uma festa pagã, pretexto para as pessoas comprarem mais, consumirem mais, gastarem mais.
Todo o ser humano tem uma dimensão espiritual – o que não quer dizer necessariamente religiosa. Não sou católico, como já disse noutras ocasiões, mas preciso às vezes de estar sozinho, de refletir em silêncio, longe da confusão e do barulho. Mas o lado contemplativo do ser humano está a perder-se. As pessoas não querem pensar – querem cada vez mais consumir. São legiões de consumidores, satisfazendo todas as carências no consumo. Consomem imagens na TV e no telemóvel, consomem música em altos berros, consomem comida, consomem roupa, consomem divertimento.
Mesmo as ideias que cada um defende já não resultam da sua reflexão – são produtos de consumo adquiridos nas redes sociais.
Esta sociedade caminha para a estupidificação e o vazio.
As religiões – e em particular a religião católica, maioritária em Portugal – tinham muitos defeitos mas também uma vantagem importante: chamavam os seres humanos para a sua dimensão espiritual. Eram críticas do materialismo e da ostentação. Com o recuo das religiões no Ocidente, e o avanço da chamada ‘sociedade de consumo’, as pessoas perderam essa dimensão. E ficaram embrutecidas.
As erupções de violência, coletivas ou individuais, que observamos nas nossas sociedades – expressas, por exemplo, na violência doméstica –, também são reflexo dessa dimensão animalesca de gente que perdeu toda a espiritualidade.