Cada tiro, cada melro

O PS apanhou-se com maioria absoluta e aí está o regabofe do compadrio sem pingo de vergonha.

Pior era impossível. António Costa bem pode dizer que não é responsável pela formação dos gabinetes dos seus ministros, mas é ele quem propõe os nomes dos membros do seu Governo – ministros e secretários de Estado – ao Presidente da República, bem como é o chefe de Estado quem lhes dá posse. Assim dita a Constituição.

Logo, nem um nem outro podem lavar as mãos, quais Pilatos, da responsabilidade pelos empossados. De outro modo, serviria para quê o cerimonial? 

Para salamaleques da praxe e beija mão ao Presidente, já há inaugurações e outras iniciativas conjuntas que cheguem.

Ora, o que tem vindo a passar-se nestes últimos tempos é que cada novo membro do Governo de maioria absoluta do PS liderado por António Costa não só tem rabos de palha como há casos em que já deitam fumo quando não estão mesmo queimados.

E tudo isto cheira demasiado a esturro.

Porque é incompreensível e, por mais legitimidade que tenha um Governo assente numa maioria absoluta, inaceitável.

Convenhamos, nunca se viu tamanha dança de cadeiras em tão pouco tempo e tanta trapalhada, tantas dúvidas e suspeitas de uso e abuso de dinheiros públicos, de clientelismos, de amiguismos, de pagamentos de favores, de aproveitamentos pessoais e familiares, de tudo menos a proteção e promoção do bem comum e do interesse público.

O PS apanhou-se com maioria absoluta e aí está o regabofe do compadrio sem pingo de vergonha.

Sim, convenhamos, é caso para dizer que está indubitavelmente em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. Bastava, para tanto, tudo o que já se passara ao longo do ano findo de 2022. 

Acontece que 2023 começa como o ano que acabou: com mais trapalhadas e novas suspeitas sobre governantes acabadinhos de nomear.

Num dos casos – revelado pelo CM de ontem –, a nova secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, tem as contas penhoradas e é acusada pelo Ministério Público de (conjuntamente com o marido, presidente da Câmara de Vinhais) receber muito mais dinheiro do que aquele que declarava. Além de, pelos vistos, também acumular funções públicas e privadas de forma considerada ilegal e de, enquanto responsável pela Associação Nacional de Criadores de Suínos de Raça Bísara (uma associação sem fins lucrativos), ter adjudicado diretamente a um cunhado uma empreitada de umas dezenas de milhares de euros.

Num outro caso – revelado nesta edição –, o novo secretário de Estado do Ambiente vendeu há dois anos a empresa titular do seu ateliê de arquitetura (a CRIAT) a uma empresa agrícola detida por duas irmãs dos acionistas maioritários (sendo também elas próprias acionistas e uma delas administradora) do grupo Semural, Waste & Energy, SA, cuja atividade principal está ligada ao tratamento e comercialização de lixo e resíduos perigosos, sendo os detentores do polémico aterro sanitário de Valongo – que inclui a sempre muito contestada importação de resíduos perigosos, nomeadamente de Itália.

Já para não falar do caso do novo ministro das Infraestruturas e anterior secretário de Estado, João Galamba, cujo nome, como recordou a revista Visão nesta semana, é referenciado na investigação do caso do hidrogénio, em que surgem também apontados os ex-ministros socialistas João Pedro Matos Fernandes e Pedro Siza Vieira.

É o que é.

Cada cavadela, sua minhoca.

Como se o recrutamento dos governantes não devesse e tivesse de obedecer a um rigoroso crivo de idoneidade e competência.

Tanto por parte dos assessores que coadjuvam o primeiro-ministro, a quem cabe a responsabilidade de os propor, como dos serviços de apoio ao Presidente da República, a quem incumbe dar-lhes posse.

Além de que, no mínimo, cabe aos próprios assumir e comunicar as suas limitações, incompatibilidades ou incapacidades para o exercício do cargo que lhes é proposto, sob pena de insanável deslealdade para com quem os nomeia ou empossa.

É também por isso que, nestes casos, não pode admitir-se que continuem nas funções em que foram empossados.

De outro modo, não são apenas eles que ficam em causa. É também o ministro que o sugeriu ao primeiro-ministro, o próprio chefe do Executivo que o propôs ao Presidente da República e o chefe de Estado a quem a Constituição confere o poder /faculdade, não obrigação) de lhes dar posse.

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa estão, pois, em causa. 

Este Governo está condenado. Não é preciso, nem porventura desejável, que haja dissolução da Assembleia da República, porque não estão reunidas condições para a dissolução do Parlamento nem esgotada a possibilidade de o primeiro-ministro formar um novo Governo. Mas, a fazê-lo, que passe cada governante pelo imprescindível crivo prévio. 

Tanto do PM como do PR.

E, já agora, de um Parlamento que não pode demitir-se das suas funções, mesmo com uma maioria de um só partido.

Ontem, António Costa anunciou na ARque deverá passar a haver um hiato entre a proposta de nomeação e a posse para permitir maior escrutínio.

Face ao que está em causa, o melhor era começar tudo de novo. Mesmo!