O questionário e a separação de poderes

Este questionário pode ser visto como um motivo de riso, mas constitui um sintoma muito sério de degradação das nossas instituições… 

Tive ocasião de referir recentemente numa entrevista que tínhamos sérios problemas de separação de poderes na nossa justiça. Efectivamente, não apenas existem sucessivas portas giratórias entre o Governo e os tribunais, com magistrados convidados para integrar o Governo, que regressam depois aos tribunais, como também o Governo solicita frequentemente pareceres jurídicos à Procuradoria-Geral da República, os quais apenas homologa se corresponderem à sua própria posição. Um exemplo recente foi a solicitação de um parecer à PGR sobre a legalidade da greve dos professores, uma questão de óbvio cariz político na qual a PGR nunca se deveria ingerir.

 

Infelizmente o triste episódio da criação de um questionário em ordem a antecipar problemas relativamente às pessoas que o primeiro-ministro ou algum ministro convida para integrar o Governo foi mais um exemplo de que a separação de poderes não é adequadamente respeitada em Portugal. Sejamos claros: o convite a determinada personalidade para integrar o Governo é claramente um acto político da exclusiva responsabilidade do primeiro-ministro. Se a escolha foi infeliz, naturalmente que o primeiro-ministro deve assumir as consequências, em lugar de as procurar imputar ao escolhido ou a outras entidades.

No entanto, perante as sucessivas escolhas desastradas do primeiro-ministro, que redundaram em demissões sucessivas de governantes, o mesmo procurou elidir a sua responsabilidade nas escolhas, procurando reparti-las com terceiros. Numa primeira fase, propôs envolver o Presidente da República no assunto, criando um sistema de verificação de governantes entre a proposta ao Presidente da República e a sua nomeação. Naturalmente que o objectivo era responsabilizar o Presidente da República pelas escolhas que corressem mal, o que não faz qualquer sentido, pois independentemente de a nomeação caber ao Presidente, naturalmente que a escolha dos membros do Governo é da competência do primeiro-ministro, que os propõe ao Presidente. O Presidente recusou, por isso, liminarmente a sugestão.

No entanto, o Presidente da República aceitou, a pedido do primeiro-ministro, questionar o Presidente do Tribunal Constitucional e a Procuradora-Geral da República sobre se os mesmos estariam disponíveis para colaborar numa averiguação aos governantes antes da sua nomeação, o que ambos recusaram. Saúda-se a recusa, uma vez que nos parece inconcebível envolver qualquer Tribunal ou o Ministério Público na escolha de governantes, sob pena de grave violação do princípio da separação de poderes. Que esta situação tenha sido sequer equacionada e proposta é um grave sintoma da forma como a separação de poderes está a ser encarada no nosso país.

Foi apenas depois desta recusa que se partiu para o questionário prévio à integração dos membros do Governo, constante da Resolução do Conselho de Ministros 2-A/2023, de 13 de Janeiro. Trata-se de uma solução absurda, uma vez que a escolha dos governantes é da competência exclusiva do primeiro-ministro, não do Governo, e a mesma não pode naturalmente ficar dependentemente de questionário algum. 

Mas, como se o questionário não bastasse, António Costa solicitou no dia seguinte na Comissão Nacional do PS que o partido passasse a ser mais exigente na escolha de membros do Governo, como se tal não fosse da sua exclusiva responsabilidade.

Em qualquer caso, o questionário, além de provocar a hilaridade geral pelo teor absurdo das questões, lançou ainda a polémica sobre se o mesmo não deveria ser igualmente respondido pelos actuais governantes, tendo imediatamente o Presidente da República se pronunciado afirmativamente quanto a esta questão.

 

Este questionário pode ser visto de facto como um motivo de riso, mas constitui um sintoma muito sério de degradação das nossas instituições, de violação da separação de poderes, e da dificuldade de o primeiro-ministro assumir a sua própria responsabilidade pelas escolhas que faz num assunto tão sério como é o Governo do nosso país.