Bárbaros, vândalos e outras vítimas de difamação

A palavra ‘bárbaro’ sugere de imediato homens feios, porcos e maus. No livro Os Erros da História, de que aqui publicamos um excerto, David Mountain desmonta este estereótipo e mostra até que ponto ele é enganoso.

Numa manhã fria e ventosa do ano 468 d. C., num dos extremos mais distantes do Império Romano, um bispo chamado Idácio senta-se para escrever um relato do apocalipse iminente. Em latim tosco e tortuoso, propõe-se compilar «todas as calamidades desta época miserável», desde a fome e a peste que perseguem a Terra aos cometas e eclipses que assombram os céus. Regista estranhas histórias de galos que cantam ao pôr do sol, de sangue que brota do chão e de rebanhos de ovelhas que irrompem misteriosamente em chamas. Na província de Idácio, a Galécia, no noroeste da Espanha, tem-se visto lentilhas verde-brilhante a chover do céu. E agora aparece o sinal mais seguro da ira de Deus: os bárbaros.

«Os bárbaros correm à solta pela Hispânia», escreve Idácio. Com implacável severidade, narra atrocidades após atrocidades perpetradas pelas mãos desses selvagens sedentos de sangue. «Eles encontram multidões de pessoas de todos os tipos e logo as massacram. Saqueiam cidades. Raptam jovens mulheres. Invadem as igrejas sagradas, derrubam e destroem os altares e carregam todos os objetos sagrados. Incendeiam todos os outros edifícios e devastam os campos.» As páginas da explanação de Idácio tornam-se monótonas com relatos semelhantes. O bispo deve ter olhado para o fim dos tempos — a apenas catorze anos de distância, de acordo com os seus cálculos — com uma sensação de alívio.

Tal pessimismo era generalizado entre os literatos do império durante os séculos IV e v, uma vez que as fronteiras anteriormente estáveis do mundo romano se desmoronaram sob os ataques dos bárbaros «selvagens e incontroláveis». Na Gália — uma área aproximadamente equivalente em tamanho à atual França —, o poeta Rutílio observou entorpecido como nem as cidades nem as fortalezas eram «capazes de superar as armadilhas e as armas da fúria bárbara». Na fronteira oriental, o historiador Amiano relatou que «o reino da selvajaria espalhava-se por toda a parte». Mesmo na Itália, o próprio coração do império, o estudioso Procópio descreveu como os bárbaros «destruíram todas as cidades que capturaram […] e mataram todos os que cruzaram o seu caminho, tanto jovens como velhos, não poupando mulheres ou crianças». Havia uma sensação crescente de que o outrora inexpugnável império se desvanecia rapidamente. […]

Na verdade, o drama tem tido tal poder de permanência que a nossa compreensão dos bárbaros mal se alterou nos 1500 anos desde que Idácio escreveu o seu relato dos últimos dias do império. Basta considerar o opróbrio que ainda escorre da palavra «bárbaro» ou as conotações negativas que permanecem associadas às várias tribos bárbaras. Os Góticos emprestaram o seu nome a qualquer coisa escura, macabra ou violenta. Os Hunos, antes de serem associados a soldados alemães durante a I Guerra Mundial, eram usados para se referir a qualquer insano destruidor de beleza. A destruição gratuita dos Vândalos, entretanto, era tão notória que o crime de vandalismo foi nomeado em sua honra. A própria barbárie tornou-se uma palavra de ordem para a crueldade selvagem, reservada apenas ao mais brutal ou terrível dos crimes. Na mesma semana em que escrevi esta frase, os seguintes acontecimentos «bárbaros» foram noticiados: colheita ilegal de órgãos na China; relatos de mutilação genital feminina na Escócia; relatos de abuso de animais em Yucatan; um ataque terrorista que matou 46 polícias na Índia; uma violenta agressão sexual na Nigéria; vivissecção de cães nos EUA; e a mutilação de uma alpaca em Oxfordshire. É um brutal legado para os bárbaros.

Mas será que se justifica? Os bárbaros eram realmente tão bárbaros quanto fomos levados a acreditar? Eram os Góticos, góticos? Os Vândalos, vândalos? Só nas últimas décadas é que arqueólogos e historiadores têm vindo a compreender a surpreendente verdade sobre estas pessoas e a desafiar os estereótipos que lhes foram impostos. Longe de serem os vilões da história, os bárbaros são, na verdade, vítimas de uma das maiores campanhas de difamação de sempre.
[…]

Assim, quão fiáveis são as descrições romanas dos bárbaros? Comecemos pelas coisas em que os Romanos acertaram: parece que muitos bárbaros eram realmente grandes e peludos. Os autores clássicos escreviam regularmente sobre os «enormes corpos» dos guerreiros germânicos que encontravam, e — permitindo uma pequena licença poética por parte dos Romanos — as provas arqueológicas parecem apoiá-los, sugerindo que o bárbaro germânico médio era pelo menos um ou dois centímetros mais alto do que o seu homólogo romano. Também podemos estar bastante confiantes quanto ao famoso aspeto peludo dos bárbaros, graças ao grande número de cronistas imperiais que escreveram sobre o assunto. Os Romanos — sempre um grupo conservador quando se tratava de penteados (nem sequer tinham uma palavra para bigode) — ficaram fascinados e um pouco assustados com a variedade de penteados que encontraram entre os vários bárbaros. Quando os Ávaros chegaram a Constantinopla, vindos da Ásia Central, pela primeira vez, uma testemunha ocular relatou que «toda a cidade correu para os observar» e ver o seu cabelo comprido e entrançado. Quando um bando particularmente hirsuto de bárbaros germânicos se estabeleceu no norte de Itália, os romanos de barba escanhoada chamavam-nos simplesmente de Barbas Longas; com o tempo, passaram a chamar-se Lombardos, e a sua nova casa na Itália, a Lombardia.

Quanto ao famigerado «fedor» bárbaro, no entanto, há boas razões para pensar que se deve a alguma calúnia imperial. Para começar, a palavra romana para sabão, sapo, entrou no latim através das línguas germânicas dos bárbaros do norte. O amor dos Vândalos pela higiene era, na verdade, uma fonte de ridículo no mundo antigo, e os Romanos zombavam do seu decadente hábito de «tomar banho […] todos os dias». Com toda a probabilidade, a metrópole de Roma — com a sua quase total falta de recolha de lixo ou sistemas de esgotos capazes de lidar com o lixo humano — era um lugar muito mais anti-higiénico do que qualquer povoação bárbara.

Outras provas também sugerem que a vida de um típico bárbaro não era de violência ou selvajaria incessante.

Sabemos agora que a música, o canto e a poesia eram muitas vezes aspetos importantes da cultura bárbara, e que os bárbaros esperavam que os seus chefes demonstrassem habilidade musical, bem como militar. Também eram artistas e mestres do metal, e as suas joias de ouro eram muito apreciadas, mesmo entre os Romanos. Quando o estadista imperial Cassiodoro recebeu uma espada do rei gótico Teodorico, maravilhou-se com a sua construção, observando que poderia ter sido obra do próprio Vulcano, o deus romano da forja. Também se sabe que as sociedades bárbaras estavam longe de não terem lei. Exemplos sobreviventes de códigos legais bárbaros não são apenas surpreendentemente pormenorizados — um código legal franco do início do século VI tem vinte cláusulas cobrindo diferentes tipos de roubo de porcos —, como privilegiavam o castigo através de multas e compensações no lugar de violência. No século I d. C., quando o poder romano se sentiu mais confiante na sua superioridade sobre os bárbaros, até estava disposto a admitir que os seus vizinhos eram «bondosos e hospitaleiros», «em nada grosseiros ou malfeitores».

Outro equívoco que precisa de ser dissipado é a noção dos bárbaros como estrangeiros misteriosos atravessando as fronteiras imperiais. Com as notáveis exceções de Hunos e Ávaros, que causaram tanta excitação na sua chegada a Constantinopla, muitos dos grupos bárbaros que atravessaram as fronteiras imperiais nos séculos IV e V já eram bem conhecidos dos Romanos. Como escreve o historiador Walter Goffart: «Definitivamente, as invasões bárbaras não ocorreram num império incauto, como se seres misteriosos tivessem pousado do espaço sideral. Pelo contrário, Roma sempre teve tribos guerreiras às suas portas e tinha séculos de experiência em lidar com elas.» No final do século II a.C., a República Romana travou uma dura guerra de doze anos contra as tribos germânicas dos Cimbros e dos Teutões. Em 9 a.C., o império perdeu três legiões inteiras — cerca de 12 mil homens — para uma emboscada da tribo germânica dos Queruscos, sofrendo uma das suas maiores derrotas militares de sempre. Na década de 250, quando o império sofria de um avolumar de crises internas, enfrentou ataques por mar dos Góticos e por terra dos Francos.

No entanto, Romanos e bárbaros não se encontraram apenas no campo de batalha. Havia extensos laços comerciais entre ambos, com os Romanos a trocarem cerâmica, vidro, vinho, louça e, ocasionalmente, armas com várias nações bárbaras por gado, peixe, sal, escravos e âmbar. O facto de a palavra «vinho», em quase todas as línguas europeias, incluindo o inglês, poder ser rastreada até ao latim vinum revela a extensão do comércio de vinho romano. Tem sido até sugerido que as lendas nórdicas dos misteriosos anões metalúrgicos são uma memória distante dos Romanos, que outrora negociaram com tribos germânicas, e das suas espadas de elevada qualidade.

Com o comércio veio a integração. O império era o lar de escravos bárbaros, mercadores, soldados, políticos e até conselheiros imperiais. Talvez surpreendentemente, o exército romano tornou-se especialmente dependente das tropas bárbaras para sustentar os seus efetivos, a ponto de «os bárbaros» ser calão para o exército em várias partes do mundo romano. Mesmo os Hunos, os arqueiros bárbaros da Antiguidade, foram recrutados para o exército imperial algumas vezes, dizendo-se que lutaram com grande lealdade. Um número significativo de soldados bárbaros subiu nas fileiras e tornaram-se generais, e um — Cláudio Silvano — até se proclamou imperador em 355 d. C. (embora tenha sido assassinado apenas 28 dias depois).

Séculos de contacto, comércio e casamentos entre esses dois mundos esbatem as linhas entre romanos e bárbaros. Os bárbaros podem tornar-se romanos — e os Romanos podem tornar-se bárbaros. A indumentária bárbara era a grande moda no baixo-império, com jovens romanos a imitarem os seus vizinhos incivilizados, deixando crescer cabelo e barbas e adotando roupas de estilo bárbaro. As autoridades imperiais ficaram tão preocupadas com essa «moda sem sentido» que, em 399, tornaram o uso de calças um crime — considerado um sinal certo de barbárie — em qualquer parte da cidade de Roma. Uma outra lei, de 416, proibia expressamente qualquer homem romano de deixar crescer o cabelo ou usar roupas desportivas feitas de peles de animais. Os bárbaros podem não ter sido populares, mas eram uma parte inseparável do falecido mundo romano. l

Excerto do capítulo ‘Bárbaros, Vândalos e outras vítimas de difamação’, do livro Os Erros da História, de David Mountain (ed. Alma dos Livros)