Por estes dias, pensando na crise da imprensa, passei mentalmente em revista os jornais que morreram nos últimos 50 anos. O Século, o Diário de Lisboa, o Diário Popular, A Capital, o República, O Primeiro de Janeiro, o Comércio do Porto, O Tempo, O Jornal, O País, o 24 Horas, O Dia, O Diário, O Independente e o Semanário…
Em desespero, os seus responsáveis lançaram mão de expedientes vários como os brindes, as edições gratuitas, as baixas de preço, as mudanças de direção.
Estes esforços resultaram invariavelmente infrutíferos. Os brindes têm apenas um efeito momentâneo: quando um jornal deixa de os oferecer, cai para valores inferiores aos que tinha antes. As edições gratuitas, oferecidas na rua, são um terrível engano: uma pessoa que recebe um jornal de graça nunca mais pagará para o ter. A diminuição do preço também não funciona: nas experiências que conheço, os jornais não aumentaram as vendas e perderam receitas. E as mudanças de direção, idem, aspas: não recordo nenhum caso de um jornal ter ganho leitores por trocar de diretor. Ou melhor: conheço um. Mas foi um caso extraordinário.
Talvez o leitor não acredite, mas eu nunca tinha pensado nisto. Talvez à distância se veja melhor.
Quando cheguei à direção do Expresso, o jornal tirava 40 e poucos mil exemplares por semana. Em conversa com um dos jornalistas, Joaquim Vieira, disse-lhe: «Vamos chegar aos 50 mil. E depois aos 60 mil». Ele olhou-me com desconfiança e perguntou: «Vamos crescer como, se não contratarmos mais pessoas?». Respondi: «Aproveitando melhor aquilo que temos».
Ora, nesse mesmo ano ultrapassámos os 50 mil exemplares, e depois foi uma cavalgada ascendente: lembro-me de termos festejado os 60 mil, e depois os 80 mil, e os 100 mil, os 120 mil, os 150 mil, os 200 mil!
O que explicará esta subida vertiginosa? Não caio na ratoeira de dizer que foi mérito meu. Também foi, mas não só: tratou-se de um conjunto de fatores que se encaixaram de modo perfeito, como as peças de um puzzle.
Primeiro, o projeto de raiz, pensado por Francisco Pinto Balsemão, era muito bom: um jornal à inglesa, arejado, independente, com distinção clara entre notícia e opinião, apostando na informação própria, exclusiva, e não dependendo totalmente das agências. Um jornal diferente daqueles que existiam. Este era um património magnífico.
Em segundo lugar, a presença do Vicente Jorge Silva à frente da Revista. Éramos duas pessoas muito diferentes: ele explosivo, sanguíneo, repentista, eu analítico, reflexivo, mais frio. Ele quase anarquista, eu mais conservador. E a coexistência destas duas personalidades no mesmo espaço, até uma certa emulação, criou uma tensão que se transmitia ao jornal e lhe dava energia.
Em terceiro lugar, se os nossos temperamentos eram muito diferentes, tínhamos uma coisa em comum: a independência. Não obedecíamos a cartilhas nem a patrões ideológicos. Enquanto outros semanários tinham ligações a setores políticos – O Tempo à direita, O Jornal à esquerda –, o Expresso não era da direita, nem da esquerda, nem do centro. Era o Expresso.
Em quarto lugar, o facto de eu não ser jornalista (nem sequer ter trabalhado até aí numa redação) acabou por ser um trunfo. Salazar costumava dizer que não tinha muitas das qualidades dos portugueses mas também não tinha alguns dos seus defeitos. Eu pensava o mesmo: não tinha muitas das qualidades dos jornalistas mas também não tinha alguns dos seus defeitos. E isso permitia-me olhar para o jornal de fora. Tinha a sensibilidade do consumidor, não partilhava alguns dos vícios do jornalista.
Em quarto lugar, a circunstância de não ter desejado o cargo, aceitando-o com grande relutância e por insistência de Francisco Pinto Balsemão, deu-me uma grande liberdade.
Vindo da arquitetura, nunca me limitei a ser um diretor-jornalista.
Recuperei para a redação o sótão do edifício, que estava sem uso. Introduzi várias alterações gráficas (com o Luís Ribeiro). Criei o saco de plástico, que permitiu aumentar o número de suplementos sem o jornal se tornar impossível de transportar. Lancei os Guias (com o Rui Cardoso): o Guia Expresso de Portugal, o Guia das Cidades e Aldeias Históricas, o Guia do Melhor de Portugal, o Guia da Boa Cama e da Boa Mesa, etc.. Este produto foi criado de raiz, desde o conceito aos conteúdos, ao formato, à caixa para guardar os fascículos. Além disso, publicámos grandes obras em volumes colecionáveis, como Os Lusíadas, ilustrados por Pedro Proença (e ‘explicados’ pelo meu tio José Hermano Saraiva). E na primeira semana de cada ano oferecíamos um Mapa atualizado das estradas de Portugal.
Estas iniciativas diferenciavam-se em absoluto dos brindes, pois eram produtos editoriais concebidos e executados pela redação. Não oferecíamos faqueiros, nem serviços de chá, nem boias de praia.
A ideia era criar uma ‘comunidade de leitores’, partilhando um património comum. Chegámos a pensar no ‘cartão do leitor do Expresso’.
Mas, mais importante do que tudo, foi termos tido a sorte formidável de ir ao encontro dos anseios de uma classe média em crescimento acelerado e que esperava naquela altura um jornal assim: radicalmente independente, politicamente influente, verdadeiro, com investigação exclusiva, notícias próprias e criatividade editorial.
Sendo um jornal institucional, tomámos decisões contra a corrente: quando apareceu o Semanário, que se apresentava como um concorrente forte, em vez de baixarmos o preço, subimo-lo. Noutro plano, quando ia aparecer o Público, fizemos uma campanha publicitária com o slogan «Acredite, se ler no Expresso»; subliminarmente, sob a aparência de uma mensagem positiva, dizíamos que os outros jornais não eram de fiar…
Devo confessar que o enorme crescimento do Expresso nessas décadas de 80 e 90 até a mim me surpreendeu. Mesmo quando não fazíamos nada para isso, o jornal aumentava de vendas. Como aqueles papagaios que apanham o vento de feição e sobem, sobem, sobem até deixarmos de os ver.
Foi assim esse período. Que no panorama da imprensa mundial representou um caso extraordinário. Não conheço nenhum igual ou parecido.
O Expresso faz agora 50 anos. Mas, depois do lançamento e do período do Verão Quente, as suas duas grandes décadas foram indubitavelmente aquelas.