Em meados de dezembro, imediatamente antes do auge das polémicas sobre os ‘casos e casinhos’ no Governo, António Costa deu uma entrevista à revista Visão, que chocou muita gente ao afirmar: «Habituem-se!».
Era – dizia-se – um sinal de desprezo pelos portugueses.
Como se lhes dissesse: «Podem gritar à vontade, espernear à vontade, protestar à vontade, que vão ter de me aturar por mais uns anos porque tenho maioria absoluta e não estou a pensar ir-me embora».
Passados muitos dias, Costa veio dizer que a afirmação estava ‘descontextualizada’ e que o sentido não era aquele.
Mas era; eu ouvi o que ele disse e a ideia, com mais ou menos nuances, era de facto essa.
Um mês e meio depois da entrevista à Visão, o mesmo António Costa deu uma entrevista à RTP.
E aí reconheceu que o Governo tem cometido erros, penitenciou-se por isso e até disse que no ano passado aprendeu muito como primeiro-ministro.
É verdade que uma pessoa está sempre a aprender.
Mas um homem de 61 anos que sempre foi político e nunca fez mais nada, que foi várias vezes ministro, que é primeiro-ministro há sete anos, era suposto já ter aprendido os principais segredos do cargo.
Vir dizer ao fim de tanto tempo que aprendeu muito no último ano significa o reconhecimento de que até aí fez muita coisa mal feita; ou, pelo menos, que podia ter feito muito melhor.
Mas o objetivo deste texto não é discutir o conteúdo das entrevistas de António Costa – nem o desta nem o de outras.
O que me interessa é uma coisa diferente.
Comparando as entrevistas à Visão e à RTP, a maioria dos comentadores disse que a segunda foi muito melhor do que a primeira, que a arrogância, a autossuficiência, até um certo desprezo pelas críticas que o primeiro-ministro aí revelara tinham dado lugar a uma atitude humilde, compreensiva e dialogante.
«Costa aprendeu!», concluíram esses analistas.
Mas, ao dizerem isto, faltou-lhes concluir o que para mim foi mais importante.
O que mais me impressionou foi que António Costa parece dançar conforme a música.
Ontem dizia o que achava ser necessário dizer naquela altura; hoje diz o contrário.
Ontem comportava-se de uma maneira, hoje comporta-se doutra.
Ontem mostrava-se arrogante, hoje finge-se humilde e arrependido.
Ora, penso que aqui reside a força e a fraqueza de António Costa.
A sua força é simultaneamente a sua principal fraqueza.
Aquilo que faz dele um bom político – a duplicidade, a capacidade de se adaptar às circunstâncias do momento – é o que o inibe de ser um bom governante.
O excesso de taticismo impede-o de ter uma estratégia.
Tem artes de comerciante, é capaz de levar a bom porto uma negociação difícil, mas esgota-se aí e não define uma linha de rumo, uma linha de ação, um plano.
A maioria absoluta veio tornar mais evidente essa sua característica.
No tempo da ‘geringonça’, o mais importante era ter habilidade política.
Era saber negociar com os parceiros para se manterem unidos.
Agora o que seria preciso era saber governar.
E aí António Costa falha.
Mário Soares tinha um projeto: a integração de Portugal na Europa.
Cavaco Silva tinha um projeto: o crescimento económico e a liberalização da economia.
António Guterres tinha um projeto: o Estado social.
José Sócrates, no meio de todas as trapalhadas, tinha um rumo: a retoma do crescimento, na esteira de Cavaco, e a transição para as energias renováveis.
Ora, qual é o projeto de António Costa?
Alguém é capaz de dizer?
A sua única preocupação visível é a sobrevivência política.
Os equilibrismos para se conservar no poder.
Quando António Costa sair de S. Bento, o que ficará da sua passagem pelo Governo?
Qual foi a sua marca no país, qual foi a sua obra?
Até a grande mudança que levou a cabo no paradigma político, ao trazer o BE e o PCP para a área do poder, já se perdeu – pois, tal como os atraiu para uma aliança, assim os descartou e esvaziou.
Talvez António Costa não seja sensível a esta questão.
Talvez a sua natureza seja a de um equilibrista e não a de um construtor.
Aliás, a forma como compôs o Governo revela isso mesmo: não procurou gente para fazer, para mudar, para reformar, procurou pessoas que pudessem garantir certos equilíbrios políticos e satisfazer diversas sensibilidades dentro do PS.
É por isso que não me parece muito importante analisar o conteúdo das entrevistas de António Costa.
Ele diz hoje uma coisa e pode amanhã dizer outra – tudo depende da circunstância.
Ao elogiarem o primeiro-ministro, afirmando que o Costa da entrevista à RTP foi muito melhor do que o Costa da entrevista à Visão, muitos comentadores não se aperceberam de que estavam a acusá-lo de ter duas caras.
E essa, sendo a sua grande força, é a sua principal limitação.
É o que o impede de ser um estadista.