Papas, anti-papas e hereges: a igreja em crise

A História da Igreja é rica em períodos de tensão máxima, que redundaram muitas vezes em conflitos ideológicos e banhos de sangue.

Não é a primeira vez que a Igreja assiste à divisão das águas no seu próprio seio e enfrenta o risco de cisão. As tensões entre os que defendem uma maior abertura e sintonia com os tempos modernos e aqueles que se entrincheiram numa visão tradicionalista vem de longe.

Foi precisamente na Alemanha, há 500 anos (1521), que a excomunhão de um monge agostinho e doutor em Teologia resultou na divisão da família cristã entre católicos e protestantes. Filho de um austero mineiro, Martinho Lutero usava uma linguagem forte, terra a terra e com recurso frequente ao vernáculo. Gostava de beber cerveja e desconfiava da Igreja de Roma – havia boas razões para isso.

Na época, estavam ainda bem frescos na memória os excessos do consulado de Alexandre VI, o espanhol Rodrigo Borgia (ou de Borja), considerado um dos papas mais devassos da História. A castidade não era o forte do Pontífice Máximo, que teve pelo menos sete filhos, três dos quais de mãe incógnita. Um deles, o infame Cesare, terá organizado em 1501 uma festa no Vaticano conhecida como Banquete das Cortesãs. Um episódio que, nas palavras da historiadora Barbara Tuchman, entrou para os «anais da pornografia». «Segundo o sóbrio registo de Burchard [Johann Burchard, protonotário apostólico e mestre de cerimónias] cinquenta cortesãs dançaram após o jantar com os convidados, ‘a princípio vestidas, e depois nuas’», descreve Tuchman. «Em seguida, os candelabros com velas acesas foram retirados das mesas e colocados no chão, espalhando-se castanhas à volta, ‘as quais as cortesãs apanhavam, gatinhando de quatro em torno dos candelabros, enquanto o papa, Cesare e sua irmã Lucrécia assistiam. Seguiu-se a copulação entre os convidados e as cortesãs, com prémios de finas túnicas e mantos de seda oferecidos ‘àqueles que conseguiram realizar o ato mais vezes com as cortesãs’».

Como comentou o alemão Theodor von Ranke, autor de uma História dos Papas na Era Moderna, «até a perversidade pode atingir a sua forma de perfeição». O tema é tão vasto que deu origem a todo um livro – Papas Perversos, de Russell Chamberlain.

Alexandre VI é sinónimo da perversidade na Cúria, mas foi Júlio II, o mecenas de Miguel Ângelo, quem, para financiar as suas guerras e projetos de arquitetura, instituiu as indulgências – documentos que davam ao fiel a possibilidade de não cumprir com os seus deveres e, ainda assim, evitar os castigos do Purgatório. Queriam comer carne na Quaresma? Não havia problema, desde que pagassem uma ‘gratificação’ a Roma’. O Paraíso estava literalmente à venda.

«A fúria de Lutero atingiu o ponto de ebulição com o aparecimento na Alemanha de um frade, Johann Tetzel, que andava a vender indulgências», refere Norman Davies em Europe – A History. «Tetzel tinha sido expulso do território do Eleitor da Saxónia, que não tinha qualquer desejo de ver os seus súbditos despejarem grandes somas para os cofres papais».

Indignado com a mercantilização da fé, a 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero afixou na porta da Igreja de Vitemberga as suas 95 Teses ou Disputatio pro declaratione virtutis indulgentarum, onde denunciava esta prática como imoral. «Roma, para ele, era a sede da sodomia e da Besta do Apocalipse», comenta Davies.

A Europa dos anti-papas
As denúncias de corrupção no Vaticano não eram novas. E as divisões no seio da Igreja também não. O Oxford Dictionary of the Christian Church explica que a expressão ‘Grande Cisma’ pode servir para designar dois momentos. O mais antigo, «a rutura entre o Oriente e o Ocidente, tradicionalmente datada de 1054». «Diferenças políticas e eclesiásticas» levaram a que a relação entre o Papa Leão IX e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, terminando na excomunhão deste último em 1054. A separação entre as duas igrejas – a de Roma e a ortodoxa de Constantinopla – seria confirmada em 1472.

O outro, habitualmente designado por Grande Cisma do Ocidente, diz respeito aos anos 1378-1417, tendo começado quando os bispos franceses contestaram a eleição de Urbano VI, que entretanto começou a dar sinais de loucura, e nomearam paralelamente o cardeal Roberto de Genebra como Clemente VII. Este ficou conhecido como o período dos antipapas.

A confusão estava instalada e foi convocado um concílio para clarificar a quem afinal deviam obedecer os cristãos. A Constança, na Suíça – já então um território neutro – acorreram 30 cardeais, 3 patriarcas, 33 arcebispos, 100 abades, 50 prebostes, 300 doutores em Teologia, cinco mil monges e frades, 18 mil padres, contabiliza Stephen Greenblatt em A Grande Mudança. Para acolher todos estes dignitários, bem como os seus séquitos, foi preciso abastecer a cidade de comida – e de prostitutas. Estima-se que cerca de 700 mulheres tenham acorrido a Constança para oferecer os seus serviços.

Mas os homens da Igreja não estavam ali apenas para comer, conviver e discutir. Chamado ao concílio para apresentar as suas ideias, um reformador checo com fama de mágico e de herético chamado João Hus foi preso três semanas depois da sua chegada, apesar das garantias em contrário do Papa. «A 16 de julho de 1415, numa cerimónia solene na Catedral de Constança, o herege condenado foi formalmente destituído das ordens eclesiásticas», relata Greenblatt.

«Colocaram-lhe na cabeça uma coroa de cartão redonda, de 45 centímetros de altura e representando três demónios a apoderarem-se de uma alma e a despedaçá-la. Conduzido para fora da catedral, algemado com correntes, passando pela pira onde ardiam os seus livros, foi queimado no poste». Os guardiães da fé ainda não estavam satisfeitos. «Para garantir que não ficavam quaisquer restos materiais, os carrascos despedaçaram os seus ossos carbonizados e atiraram-nos ao Reno».

Vendo a prisão de Hus, o Papa italiano João XXIII ficou com medo. As garantias alheias de que estava em perfeita segurança não o tranquilizavam. A cobro da noite, «vestindo um capote cinzento e envolto por um capuz cinzento de modo a que ninguém visse o seu rosto, transpôs discretamente os portões da cidade. Com ele seguiram um besteiro e outros dois homens, ambos embuçados». 

A fuga durou apenas algumas semanas. «Finalmente, sob grande pressão por parte do imperador, o principal protetor de Cossa entregou o seu incómodo hóspede, e o mundo assistiu ao espetáculo edificante de um papa ser posto sob escolta como um criminoso».

Continua Greenblatt: «Setenta acusações foram formalmente enunciadas contra ele. Receando o seu efeito na opinião pública, o concílio decidiu suprimir as 16 acusações mais escandalosas – nunca reveladas posteriormente – e acusou o pontífice apenas de simonia, sodomia, violação, incesto, tortura e assassínio. Foi acusado de envenenar o seu antecessor, junto com o seu médico e outras pessoas. A pior de todas – pelo menos entre as imputações que foram tornadas públicas – foi recuperada pelos seus acusadores ao antigo combate contra o Epicurismo: dizia-se que o mantivera obstinadamente, perante pessoas reputáveis, não haver vida futura ou ressurreição e que as almas dos homens pereciam com os seus corpos, como os animais».

«A 29 de maio de 1415, foi formalmente deposto» e «eliminado da lista de papas oficiais».

Como já se viu, o caso de Baldassare Cossa, ou anti-papa João XXIII (nome que só viria a ser assumido em 1958 por outro italiano, Angelo Roncalli) não foi suficiente para dissuadir os herdeiros do trono de S. Pedro, ou altos eclesiásticos, de terem comportamentos debochados.

‘Erasmo pôs o ovo, Lutero chocou-o’
Outro livre-pensador, Erasmo de Roterdão, satirizou os homens da Igreja e alinhou com Lutero em muitos seus argumentos. Vistos da Europa do Norte, os requintes e rituais da Cúria romana pareciam pouco menos do que exóticos ou até mesmo absurdos. Erasmo denunciou-os e manifestou a sua simpatia por Lutero. Evitou sempre, porém, comprometer-se por completo. Ainda assim, segundo um adágio popular, «Erasmo pôs o ovo, Lutero chocou-o».

«A revolta luterana assumiu a sua forma definitiva durante três sessões posteriores da Dieta imperial», escreve Norman Davies. A primeira foi em Speyer, em 1526, em que os ‘rebeldes’ alemães introduziram uma cláusula que previa a liberdade de cada príncipe escolher a religião no seu território. «Em Augsburg em 1530 apresentaram uma súmula contida das suas crenças. Esta Confissão de Augsburg, composta por Melanchton [o ‘braço-direito’ de Lutero, amigo de Damião de Góis], era o manifesto protestante ao qual o Imperador, intransigente, respondeu com o prazo de abril de 1531 para se submeterem», continua Davies. «Em resposta, os príncipes protestantes formaram a Liga de Schmalkalden. Daí em diante, os campos católico e protestante estavam claramente definidos».

A revolução posta em marcha por Lutero teve consequências dramáticas na Alemanha. «Infelizmente para a civilização, Lutero não se limitou a assentar as suas dúvidas e a dar-lhes a coragem das suas convicções: libertou também a violência e a histeria latentes», escreveu Kenneth Clark no livro Civilização. «E além disto havia outra característica nórdica fundamentalmente oposta à civilização: uma hostilidade telúrica, animalesca, à razão e ao decoro, que o homem do Norte parece ter conservado dos seus dias na floresta primeva». 

Quando redigiu estas linhas, Clark tinha certamente em mente a Revolta dos Camponeses de 1525, que deixou Lutero amargurado e terá horrorizado Erasmo. «Um raio brusco rasgando as nuvens da ilusão», chamou Lucien Febvre a este acontecimento. «E Lutero viu, ele viu o homem do povo, tal como ele era realmente, miserável, inculto, grosseiro, de foice na mão e chuço levantado».

O exército de Carlos V reprimiu a revolta e os cabecilhas foram enforcados. Dois anos depois, haveria um novo episódio traumático, quando os soldados do imperador espanhol irromperam pela cidade eterna para subjugar o Papa, naquele que ficou conhecido como o Saque de Roma. No coração do Vaticano, ainda hoje se pode ver o pequeno rabisco a celebrar ‘Lutero’ sobre o fresco de Rafael A Disputa do Santo Sacramento.

Uma matilha de cães?
O confronto entre protestantes e católicos não cessou de ter efeitos indesejados – fosse na França de quinhentos, com a Matança da Noite de S. Bartolomeu, em que cerca de três mil huguenotes (protestantes) foram massacrados por católicos, fosse, por exemplo, na Inglaterra ou na Irlanda.

«Os católicos não se suportam aos outros, mas unem-se sempre que se trata de combater os protestantes. São como matilha de cães que se mordem mutuamente, mas que, assim que se descobre um veado, logo se unem para o atacar em massa», dizia Johann Wolfgang von Goethe em 1829. Cerca de duzentos anos passados, não cairá bem dizer que os católicos são como uma «matilha de cães». Mas é verdade que – seja por questões de fé ou por outras quaisquer – se digladiam entre si com uma ferocidade por vezes surpreendente.