Censura e preconceito

Um Ministério da Cultura preconceituoso nas decisões e centralista na distribuição dos impostos dos contribuintes só pode ser combatido

Por Nuno Melo

Se ficou chocado com o que se passou no Teatro S. Luiz e a substituição de um ator na peça Tudo Sobre a Minha Mãe, por não ser transexual, multiplique por 10 o escândalo e saiba que o Ministério da Cultura está a fazer muito pior.

A Direção-Geral das Artes é o organismo deste Ministério que coordena e executa as políticas de apoio às artes em Portugal, implementando programas dirigidos ao setor.

A Jangada, por seu lado, é uma companhia profissional de teatro fundada em 1988, que só em 2022 realizou mais de 100 espetáculos, sendo a única que atua na região do Tâmega e Sousa, com perto de meio milhão de habitantes e muitas carências do ponto de vista socioeconómico e cultural. 

Em 2023, ao contrário do que sucedia há anos, A Jangada foi excluída do auxílio estatal para o quadriénio seguinte. Mas se a decisão só por é é grave, os motivos foram inqualificáveis.

No que toca à Jangada, esteve em apreciação a candidatura ‘Personagem Feminina: Géneros e Género’. Sucede que o facto dos dramaturgos, encenadores e criadores serem homens, foi classificado de incoerente e constituiu um dos motivos para afastamento pela Direção-Geral das Artes, mesmo contando a Companhia com 6 atores e 4 atrizes e participando estas na produção,

Para o Ministério da Cultura, depois do S. Luiz, também os homens, no processo criativo, terão de deixar de pensar, conceber e dirigir na representação o que tenha que ver com o universo feminino e porventura as mulheres o equivalente no universo masculino.

O processo criativo terá de ficar encarcerado na dimensão estrita do género de cada qual, com escritores, argumentistas, atores e atrizes metidos nas caixinhas do preconceito que façam sentido à pequenez dos censores, que por desgraça coletiva, apesar da incapacidade, conseguiram ascender a lugares de relativo poder. A distorção moral é tão aberrante e a pulsão tão totalitária, que mais do que a racionalidade nas decisões, começa a ficar em causa a normalidade democrática no funcionamento do Ministério Cultura. 

Aliás, confronte-se o suposto pensamento de Pedro Adão e Silva – que a propósito do episódio do S. Luiz escreveu em artigo de opinião no Expresso, a 27 de janeiro, que: «(…) a arte implica sempre a possibilidade de cada um se imaginar naquilo que não é, e muitas vezes, a arte é até expressão da descoincidência de cada um consigo mesmo» –, com os critérios obscurantistas que valida na Direção-Geral das Artes que tutela.

Já agora, também não é aceitável que as regras legais que o Governo fixa para auxilio às Artes, sejam violadas sem problema, para benefício das regiões já de si favorecidas, em detrimento de todas as outras. O Aviso de Abertura de candidaturas, da Direção-Geral das Artes, estabelecia que nenhuma região poderia receber mais de 40% da verba disponível. Apesar disso, só para a Área Metropolitana de Lisboa foram transferidos 43,90% dos apoios, enquanto que a totalidade da região norte recebeu apenas 26,56%. Como resultado, as 19 Companhias de Lisboa foram abrangidas pela bondade do Estado, enquanto a norte, 4 das 18 Companhias candidatas foram abandonadas à sua sorte e das 14 consideradas, 11 são do Porto.

Um Ministério da Cultura preconceituoso nas decisões e centralista na distribuição dos impostos dos contribuintes só pode ser combatido. Num país civilizado, a consequência política na tutela seria óbvia. Em Portugal e com o PS, é como se sabe.