O Carnaval que já não volta

 Lembro-me de as pessoas se amontoarem atrás da porta à espera do momento mais favorável, que podia ser, por exemplo, a saída de um professor de quem poderiam apanhar ‘boleia’. E também me lembro do efeito surpresa do ovo a cair na cabeça e às vezes a escorregar para dentro da roupa, do cabelo molhado,…

Num dia destes um dos meus filhos aproximou-se silenciosamente de mim por trás e fingiu partir-me um ovo na cabeça. Foi uma sensação engraçada que me fez recuar no tempo. Seria exatamente por essa altura que muitos alunos da escola que eu frequentava começavam a armazenar ovos para o Carnaval. Pelas ruas envolventes do Liceu Dona Filipa de Lencastre, em Lisboa, lá para os lados da Praça de Londres, as caixas de água ou de gás das vivendas circundantes começavam a assemelhar-se a pequenas capoeiras sem galinhas. A mercearia Diplomata, na Av. de Roma, enchia-se de jovens compradores que esgotavam diariamente o stock de ovos. No entanto, no próprio dia, por ser mais evidente ou lhes pesar a consciência, recusavam-se a vender mais ovos, mesmo que lhes jurássemos a pés juntos que precisávamos de fazer mais algumas omeletes. 

Naquele liceu, tal como em outros daquela zona, chegado o Carnaval ninguém se atrevia a sair da escola sem antes espreitar lá para fora para ver se o caminho estava livre. Nesse dia os ‘intervalos grandes’, que se faziam pelas ruas e cafés vizinhos – é o único liceu que já vi sem gradeamento nem portão – eram passados a ir buscar munições à mochila ou às tais portinhas da água ou do gás para acertar nos amigos, colegas ou entrar em pequenas guerras. Alguns atiradores de ovos mais exímios tinham mesmo a preocupação de os guardar com maior antecedência para estarem no ponto quando os fossem usar. Ainda me lembro da irritação de um amigo quando chegou ao seu esconderijo e o encontrou vazio. Alguém lhe tinha pregado uma partida de Carnaval, mas ele não achou piada nenhuma.

Ao final do dia formava-se um cordão à entrada da escola que lançava uma chuva de ovos ao mínimo movimento de saída. Lembro-me de as pessoas se amontoarem atrás da porta à espera do momento mais favorável, que podia ser, por exemplo, a saída de um professor de quem poderiam apanhar ‘boleia’. E também me lembro do efeito surpresa do ovo a cair na cabeça e às vezes a escorregar para dentro da roupa, do cabelo molhado, de como ficava o chão e do cheiro a ovos. Ou das paredes riscadas das castanholas e do barulho dos estalinhos a cair no chão – que só voltei a ver o ano passado na caótica Nápoles. Lembro-me sobretudo de como nos divertíamos e chegávamos a casa num estado lastimável depois de um dia de pândega.

Não faço ideia se a tradição se mantém, mas imagino que não. Hoje no mínimo seria considerado um crime ou sacrilégio fazer uma coisa daquelas, com direito a suspensão e uma visita dos pais à escola. Naquela altura havia uma liberdade e tolerância diferentes e não era por isso que éramos mal-educados, que faltávamos ao respeito a alguém ou que criávamos desacatos. Acho que também não se esperava que com aquela idade fôssemos absolutamente conscienciosos e responsáveis. E ainda bem que pudemos ter essa folga, porque depois a responsabilidade é cada vez maior à medida que crescemos e já não dá grandes tréguas. Ontem à noite, por exemplo, em vez de me deitar a pensar na batalha de ovos do dia seguinte, fiquei acordada até tarde a preparar os fatos de Carnaval dos meus filhos e quando me deitei estava tão cansada que nem tive tempo para pensar em nada antes de adormecer.