Glockenwise. “Ao envelhecer, não tenho a mesma vontade de estar aos pulos e aos guinchos como quando tinha 18 anos.”

O i esteve à conversa com Nuno Rodrigues, vocalista e guitarrista dos Glockenwise, sobre o novo disco da banda, Gótico Português.

É estranho pensar que já vão longe os dias em que os miúdos de Barcelos, Glockenwise, faziam divertidas e energéticas músicas como Heat ou Time To Go. Mas não há nada de mal, os miúdos estão bem.

Depois de deixarem de parte as músicas cantadas em inglês, uma marca do início do seu percurso musical, em Plástico, aclamado disco de 2018, agora, a banda de Barcelos continua a explorar as possibilidades da língua portuguesa em Gótico Português, um disco marcado por uma melancolia e que pretende desmistificar uma certa realidade fetichizada de um Portugal que vive mais à margem.

“Queríamos mostrar um Portugal rico e fervilhante, repleto de bizarrias, de criatividade, muito diverso e distinto uns dos outros, que não é o Portugal fetichista dos lenços de Viana e dos Pauliteiros de Miranda”, conta, em entrevista ao i, o vocalista e guitarrista dos Glockenwise, Nuno Rodrigues.

Com uma força sónica que ainda não tinham relevado aos seus fãs e letras que balançam entre o nostálgico e o desencantado, os Glockenwise pretendem retirar o véu a uma realidade que conheceram durante toda a sua vida e celebrar estas suas origens.

Ao i, o vocalista explicou como surgiu este disco e refletiu sobre o estado atual da cena musical de Barcelos.

 

O último disco lançado pelos Glockenwise foi Plástico, em 2018. Quando surgiu a vontade de criar o seu sucessor, Gótico Português?

A nossa banda está sempre ativa, estamos sempre a pensar nos próximos desafios e nas próximas músicas que vamos criar. Não tenho a certeza quando é que terá sido o momento em que decidimos que estava na altura de fazer um disco novo, mas recordo-me de decidirmos que queríamos fazer um álbum deste estilo. Ainda estávamos a tocar o Plástico, em 2019, mas já imaginávamos como seria o nosso próximo passo.

No Plástico existe uma sensação um bocado mais “poptimista”, com umas letras mais leves e animadas, mas, agora, no Gótico Português, existe um ambiente de maior angústia e ansiedade. O que vos motivou agora, neste trabalho, a mudarem o sentimento das vossas músicas?

Percebo que o Plástico possa parecer mais alegre, e sem dúvida que é, especialmente comparado ao Gótico Português, mas as letras carregam um certo cinismo. Há ali uma ideia de que a aquela satisfação e contentamento de que estamos a falar são falsos. Esse cinismo deu lugar agora a um desencantamento mais aberto e mais cândido.

O que despertou estes sentimentos na banda?

Isto foi algo que decorreu naturalmente através do processo de criação. Apanhámos uma pandemia pelo caminho e muitas mudanças nas nossas vidas pessoais que coincidiram com um período de amadurecimento pessoal, fundamentalmente motivado por estarmos a entrar na casa dos 30 (risos). Percebemos que a vida começa a afirmar-se de outras maneiras. Por isso, este disco é mais abertamente escuro e melancólico. Apesar de considerar que seja uma melancolia que já nos tem acompanhado há algum tempo.

Acha que o facto de terem colaborado com músicos como o JP Simões e o Rui Reininho, que trabalham tanto esta faceta mais melancólica na música, ajudou a banda a expressar este sentimento?

É engraçado porque a nossa experiência com eles é quase diametralmente oposta. Ambos são figuras tão eletrizantes e brilhantes que, para nós, foi uma espécie de choque e um impulso gigante de energia trabalhar com eles. Identificamo-nos muito com a sua obra, especialmente pela forma como abordam temas como a melancolia. Contudo, a nossa relação com eles nunca foi marcada por esse sentimento. Mesmo quando estávamos a gravar a Calor, com o Rui Reininho, que foi uma letra que fui eu que escrevi e que é marcada por um certo encantamento, todo o processo foi na verdade muito cómico e divertido. Gostamos muito do seu sentido de humor e rimo-nos imenso. Mas sem dúvida que a obra deles nos influencia muito nessa perspetiva.

Houve algum episódio, enquanto fãs que acabaram a trabalhar com estes músicos que respeitam e que vos influenciam, que vos tenha marcado?

Houve muitos, alguns que não sei se posso divulgar nesta entrevista (risos). São duas pessoas muito diferentes, mas sempre que estávamos com eles tínhamos o prazer de poder ouvir algumas das coisas mais iluminadas e, ao mesmo tempo, engraçadas que me consigo lembrar dos últimos tempos. São pessoas com um sentido de humor muito apurado.

Existe alguma tirada que possa partilhar connosco?

Lembro-me de um episódio que aconteceu quando estávamos com o JP a ensaiar. Ele tem um sentido de humor muito rápido, reage quase à velocidade da luz e tem sempre uma resposta com um aforismo muito inteligente na ponta da língua. Estávamos a falar sobre qualidades e talento e de ele dizer rapidamente: “Eu para não me meter em sarilhos perdi qualidades” (risos). Acho que é uma frase espetacular. Como quem diz ‘preferi ser mais modesto, mais simples, do que colocar em prática todo o meu potencial porque isso só me ia trazer problemas’.

Neste disco, o envelhecimento também é um tema proeminente. Por exemplo, quando se cita a letra do poema Clepsydra de Camilo Pessanha na música Água morrente. Ao ficar mais velho, sente que ficou mais fácil ou difícil fazer música rock?

É uma pergunta complexa, porque não sei bem classificar a nossa música. Por um lado, é claro que aquilo que nós fazemos é rock. Mas se perguntares a um fã de rock mais pesado ele se calhar olha para nós e considera-nos de um estilo diferente. Esta também não é uma preocupação que nós temos. Nunca foi. Aliás, desde o início do grupo que nunca quisemos encaixar, por coincidência ou intenção, em nenhuma tribo urbana ou um género mais fechado de música.

Mas acha que ainda se identifica com este estilo musical?

É normal, com o envelhecer, não ter a mesma vontade de estar aos pulos e aos guinchos como quando tinha 18 anos. Não só por uma impossibilidade física, a minha voz e o meu corpo mudaram, mas também por uma questão quase espiritual. Tenho outros anseios, há outras coisas que preciso de dizer e de experimentar e que não precisava naquela altura, que são muito diferentes. Cada atitude que nós tivemos tiveram o seu tempo e acho que o fizemos bem no tempo em que o fizemos.

Estava a dizer que os Glockenwise não pertenciam a nenhuma tribo musical. Como descreveria então agora o som atual da sua banda?

Diria que é algo que soa como um pop rock ou, como costumamos dizer na brincadeira, que é art rock, ou que é pop punk ou simplesmente música pop. O que eu acho que é mais importante é que dentro do tipo de artistas que faz aquilo que nós fazemos, e que é difícil de balizar, nós somos aqueles que, provavelmente, têm uma personalidade mais vincada. Acho que isso é o mais importante. É muito difícil ouvir-se uma música nossa e não perceber de imediato que é nossa, por várias razões, independentemente de ser boa ou má. Esta questão da identidade, das coisas soarem a nós é muito importante para o grupo.

Já falámos do poeta Camilo Pessanha, mas vocês também citam no vosso disco a escultora de Barcelos, Rosa Ramalho. Porque esta escolha?

No Gótico Português tentámos falar sobre este Portugal que está na margem e de onde nós viemos. Esta é uma margem estética, mas também territorial. É importante para nós olhar para esta margem porque sentimos que estamos num meio sítio, marcado pela centralidade e por esta periferia. Isto faz parte da nossa identidade e do nosso caráter. Neste processo, tentámos desmistificar algum Portugal fetichizado. Tentarmos encontrar pessoas ou momentos que consigam descrever aquilo que nós sentimos e somos de uma maneira muito objetiva.

E as passagens em que se ouve a escultora ajuda a passar esta mensagem?

Esta entrevista da Rosa, que é de 1968, ilustra muito bem algumas das nossas ideias. Para começar, desmistifica completamente a ideia da “pessoinha” ligada à “terrinha”. A senhora começa até por dizer que se tivesse oportunidade vivia em Lisboa, mas lá não conseguiria ter espaço para instalar um forno para cozer o barro e conseguir colocar em prática o seu mester. A arte dela é mais importante que a geografia. Ela está pouco preocupada se está em Barcelos ou em Lisboa. Ela até diz que gosta de Lisboa, o que também é importante para desmistificar esta relação província-cidade, Norte-Sul e a rivalidade Porto-Lisboa, que só diz respeito às pessoas destas cidades, porque o resto dos portugueses estão a marimbar-se para essa questão.

Mas é uma mensagem que não se resume apenas a barreiras geográficas.

Também ajuda a levantar o véu de alguns símbolos e como é possível ser da terrinha e de uma margem, mas teres uma posição crítica em relação ao teu local de origem. Que é o que nós sentimos. Nós somos de Barcelos e adoramos isto, foi uma parte muito importante da nossa formação, mas conseguimos ter também uma posição crítica. É muito engraçado quando Rosa refere que prefere o galo desenhado e pintado pelo Picasso do que o Galo de Barcelos, que é uma coisa que se espera da principal ceramista barcelense (risos).

No comunicado que lançaram sobre este disco, é citada a música Columbine, onde cantam: “How to get out? Out of this town?”. No início da vossa carreira pareciam abordar esta dificuldade em viver numa terra tão pequena. Sentem que agora estão mais em paz com o facto de serem de Barcelos?

Nunca será bem em paz. Ser de Barcelos e estar interessado na cidade implica também alguns desafios. É impossível não ter uma perspetiva crítica em relação ao que está a acontecer. É importante assumir esta postura e não nos esquecermos que foi ali que nos formamos. Existem determinadas características, que não são exclusivas de Barcelos, apenas falamos mais dessas porque é o sítio onde estamos mais presentes, que mostram que existe um Portugal que não está representado.

Que Portugal é esse que querem mostrar nas vossas músicas?

Queríamos mostrar um Portugal rico e fervilhante, repleto de bizarrias, de criatividade, muito diverso e distinto uns dos outros, que não é o Portugal fetichista dos lenços de Viana e dos Pauliteiros de Miranda. Nós fomos um produto dessa atitude um pouco mais filosófica e de uma vontade de arregaçar as mangas, não no sentido empreendedorismo, mas no sentido de quando falta meios, os meios inventam-se, sejam eles físicos ou espirituais. Nós, sendo miúdos aborrecidos de Barcelos e cheios de vontade de expandir os nossos horizontes, proporcionou-nos para lá de Barcelos, mesmo reconhecendo que foi ali que aprendemos as ferramentas todas para querer sair de lá e como sair de lá. E agora olhamos com algum carinho para isso.

Estava a falar dessa vontade de arregaçar as mangas. Os Glockenwise foram uma das principais bandas a ajudar Barcelos a tornar-se o que é hoje um dos polos mais criativos da música portuguesa. Quando olha para Barcelos atualmente, como compara com o momento em que começaram a fazer música?

Não sei se é bem ser um velho do Restelo ou não, mas diria que isso é algo que até pode ser quantificável, dado que nos últimos cinco anos não me lembro de ter aparecido nenhuma banda de Barcelos ou de me ter chegado alguma coisa que me chamasse a atenção nos últimos tempos. Isto era algo que acontecia antes com alguma naturalidade. Nós e os Killimanjaro podemos ter sido a última vaga de algo que se calhar até está a acontecer de outra maneira. Barcelos é uma cidade muito jovem e intensa e deve estar a acontecer qualquer coisa que nós não estamos a perceber, mas que venha no seguimento direto daquilo que estávamos a fazer e o pessoal que existia antes de nós, e que sentimos que herdámos algumas coisas, não consigo identificar.

Por que acha que isto aconteceu?

Acho que se criaram tantas condições com, por exemplo, o festival Milhões de Festa, que as pessoas passaram da figura de atores para a figura de espectadores. A falta de oferta era um estímulo para se criar a própria oferta. Hoje a cidade tem uma oferta cultural engraçada, com alguns agentes culturais a fazerem coisas muito interessantes, mas depois não consigo identificar essa energia e esta vontade que existe lá entre a malta mais nova. Das bandas mais recentes que associo a Barcelos são os Gator, the Alligator, mas já nem são bem miúdos, é malta que já terminou a faculdade. Neste momento, não consigo identificar adolescentes que ainda nem têm carta, que querem criar bandas e tem de andar de comboio se quiserem dar um concerto (risos). Mas se calhar existe, eu é que já perdi um pouco o contacto e já não consigo apalpar essas coisas.

Acha que existe um desinteresse da nova geração perante a música rock?

É possível, apesar de não achar que tenha a ver exclusivamente com o rock. A cultura hip-hop é muito forte em Barcelos e também não consigo identificar, neste momento, nenhum jovem artista. Mas reforço que eu posso ter esta visão porque estou mais de fora. Isto até pode estar a acontecer num circuito mais interno e que me passa ao lado. Mas sinto que na nossa altura era mais fácil comunicar para fora e querer sair do que se calhar estes eventos que agora operam num meio mais endogâmico.

Sente que isto também pode ser um problema estrutural da cidade?

Isto é também uma falha completa das estruturas de Barcelos. Nos últimos anos também não nos demos ao trabalho porque o município não disponibilizava salas de ensaio. Quando começámos, havia muitos sítios onde podíamos tocar e agora não existe nenhum, fechou tudo. Já não existe aquela ideia de cena, onde músicos e pessoas colaboravam e ajudavam-se e espaços onde era possível apresentar as suas canções. Sem isso, não dá para fazer música. Ou melhor, dá, mas se calhar é música feita em casa e publicada diretamente na internet.

Regressando ao vosso disco. O Gótico Português marca o vosso divórcio com a Valentim de Carvalho. Como é que aconteceu esta separação?

Um divórcio parece pressupor algo muito violento. Foi mais uma situação em que cada um caminhou em direção ao seu pôr-do-sol (risos), “amigo não empata amigo”. Nunca nos foi feita nenhuma imposição e nós também nunca impusemos nada. Se calhar foi mais perceber que pretendíamos trabalhar de modos que não eram compatíveis mutuamente. Ou seja, por um lado certas estratégias da Valentim de Carvalho não se adequavam se calhar ao que nós achávamos que devia ser o certo para nós e, por outro lado, o nosso modus operandi também não se adequava ao tipo de estrutura que é a Valentim de Carvalho, e isso é completamente normal. Chegámos à conclusão de que se calhar tínhamos de fazer a coisa de forma diferente. Já tínhamos saído da Lovers & Lollypops para ir para a Valentim de Carvalho, ou seja, não fazia sentido voltar a tocar num selo independente. Como tínhamos todos os recursos à nossa disposição, decidimos avançar nós, sozinhos.

Como é que foi esse desafio?

Tem sido gratificante no sentido em que temos controlo total, se quisermos. Se for preciso adiar tudo durante uma semana não há problema. Não há prazos a cumprir a não ser aqueles que foram que foram criados por nós e só quando estamos contentes com as coisas é que estas ficam concluídas. Por outro lado, a responsabilidade é sempre toda nossa e temos que nos desdobrar em cinquenta funções diferentes. Por acaso temos contado com a ajuda fundamental do nosso agente, Pedro Valente, da Azáfama, que tem sido um herói connosco, muito paciente e disponível, que tem feito muito para lá daquilo que são as suas funções. A maneira como funcionamos quase parece uma cooperativa (risos). Parece um trabalho muito mais associativo do que da indústria da música. Isso é muito importante para nós. Perceber que é um trabalho feito em comunidade.

Agora, com a vossa editora, Vida Vã, além de editarem os vossos trabalhos, estão a contar editar novas bandas ou projetos mais recentes?

O nosso selo aparece sem qualquer declaração de intenções nesse sentido. Ou seja, nós decidimos lançar o disco, que foi publicado como uma edição de autor, e criámos a editora só para dizer que existe, para já. Depois, se quisermos, fazer alguma coisa com isso, porque não? Se quisermos lançar um EP, se quisermos lançar músicas dos nossos projetos a solo, ou até, quem sabe, convidar amigos a editar e nós podemos ajudá-los através da nossa rede de distribuição. Sim, tudo isso é possível, mas não foi criado com nenhum plano em particular de o fazer e até ao momento estamos completamente focados no disco. Ainda não, ainda não se lançaram as bases de mais nada, mas quem sabe?

Agora que fala sobre o foco sobre o disco, como é que estão a preparar a apresentação do Gótico Português?

Para já temos uma série de concertos alinhados. Vamos ter o enorme privilégio de poder apresentar o álbum na Culturgest, em Lisboa, que é uma coisa que acontece muito poucas vezes a artistas no nosso campeonato, o que também nos dá uma responsabilidade enorme, e temos muita vontade de preparar um concerto muito especial para esse dia. Mas, para todas as datas, estamos a montar um concerto que consideramos estar com um ritmo muito bom e queremos convidar as pessoas, obviamente, a virem ouvir as músicas ao vivo e connosco. Para já, o disco sairá apenas digitalmente, no dia 17, e depois virá uma edição em vinil, talvez por altura do concerto na Culturgest, que estamos muito satisfeitos com o trabalho final. Trabalhamos com o Renato dos Santos que fez a fotografia e com a Irina Pereira, que fez as artes gráficas, e acho que vai ficar um objeto muito bonito.